quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

INCERTO VÔO DESPRENDIDO


A aurora. O precedente. O princípio. O risco necessário. Não podia ser diferente para o pássaro raro. Raridade expressa por sua natureza singular; por sua autenticidade. Pouco restava para a escuridão. O tempo do escuro estava para se desfazer. A aurora precedia o novo amanhecer. A vida pulsava iniciante, tecendo a manhã daquele incerto vôo desprendido. O novo estava para surgir. Emergia do pássaro o sentido daquele vôo, daquela experiência. Da aventura de não negar seu ser terreno e celestial. Um rompimento necessário, uma abertura demarcada antes do anúncio do pêndulo. O horizonte se pintava com outras cores. O escuro ia aos poucos dando lugar a tonalidades revitalizadas. Desprendimento das amarras, das grades e da dependência. O canto vital. Para onde ir? Aonde chegar? Que altura atingir? Com que velocidade? Que direção tomar? Aurora quimérica? A incerteza do vôo era a única certeza. As asas precisavam sair do habitual, do costumeiro, da única certeza estabelecida. Não podia haver mais determinismo; não podia mais haver o predomínio da não-escolha. O pássaro podia se lançar. Havia a possibilidade da abertura, da fresta escondida, ignorada. Os luzeiros da manhã que chegavam, mostravam outros pigmentos, outras misturas sendo feitas no recipiente da vida. Muitas direções para olhar. Alimentar-se antes do vôo? De qual alimento precisava o pássaro ansioso por seguir sua caminhada? Alimentar-se de horizontes, de sonoras sinfonias matinais, de Sol e céu. Um único alimento era-lhe necessário naquela manhã despontada: o alimento do desprendimento de si mesmo. Tal forma de se alimentar exigia desse raro ser, coragem para ousar, criar e sentir-se pássaro. Perceber-se, ver-se pássaro. Acostumado como estava, a chuva já não era mais sentida em sua forma original; o vento não lhe tocava de modo inigualável; a relva não podia ser-lhe o alimento. O mesmo solo, a mesma madeira, o mesmo ângulo da visão impediam-lhe de ser pássaro em sua rara existência. Indecisão tomava o lugar do incerto. Certezas prendiam o desprendido. Caminhos se descortinavam enquanto a aurora se deleitava no novo tempo. Num inusitado instante; num inexplicável movimento o pássaro rompia a manhã. Alcançava as alturas sentido suas forças o levarem para além do estabelecido. Quanto mais alto, quanto mais se lançava, quanto mais rompante era seu vôo, mais perto de si ia ficando. Sentia a energia vinda do bater de suas asas e uma vibração que brotava de seu interior. A aurora cumpria mais um ciclo de sua espiral e o pássaro tecia a manhã em um novo ciclo de sua vida. O pássaro, com as portas da gaiola abertas não era livre. A liberdade não estava apenas em sair da gaiola ou voar para o céu. Buscar as alturas. Não estava em pousar em uma árvore e outra. A liberdade estava no modo de ser pássaro. Passarinhar enfrentando os desafios da mais pura liberdade. A gaiola se rompe no instante em que o pássaro tomou posse de si mesmo. Na incerteza do vôo estava a certeza do renascer do pássaro. Certeza de que desprender-se pode ser uma perigosa aventura, mas também pode ser a mais criativa e instigante viagem ao universo existencial. Pode ser a mais bela conquista ao longo do tecido da vida. Amanheceu. 

NOGUEIRA, Valdir. 

3 comentários:

  1. Lindo poema, expressando um voo em liberdade esperançosa...que nos liberta dos limites existenciais, nos colocando na dimensão da amplitude do fluir da vida.

    ResponderExcluir
  2. Um novo amanhecer...uma nova paisagem...novos pontos de pouso...onde pousar? Não há mais volta...a liberdade sentida, vivida...ahhhh liberdade!!!!!
    A constituição do SER, pleno em seu existir na busca do co-existir...o perigo a frente, o desafio lançado, o limite do OUTRO...A ARMADILHA próxima..."os falsos afetos"...o mundo sensível poluído de aparências...pré-ocupações sufocantes denotadas de cuidados obsessivos...cuidado, cuidado, cuidado...a aparência de teia...a prisão...a gaiola...A MORTE!!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
  3. cíclico. são caminhos que se abrem dia-a-dia. gostei muito!

    abraços.

    ResponderExcluir