sexta-feira, 29 de abril de 2011

Perspectivação


Salvador Dali - O tempo no espaço, o espaço no tempo. 

Define-se o olhar à frente de um dado tempo. Não do tempo todo. Cíclico e incerto. Forma de enfrentar desafios e desacertos. Corrida insuportável para vencer a dependência, o abandono, a frieza. Passa-se por fissuras tal qual faz a nova crisálida. Enfrentam-se o silêncio e o medo tal quais os guardiões da noite e do escuro. Segue-se para um lado e para o outro; vai-se em muitas direções, chega-se ao ponto do esgotamento. É o único lugar onde se consegue chegar. É o ponto que se consegue atingir. Nada mais. Nem devaneio, nem euforia conseguem definir onde serão fixadas as próximas pegadas. Tudo e nada se consomem no vasto espaço do que parece inalcançável. Sistemas falhos. Alvos descobertos. Dispositivos rearquitetados são impostos como formas de punição. Há mais vida na morte ou mais morte na vida? É o que se pode, em si, desnudar. Nenhuma manifestação. Não há força. Triturou-se o rochedo do escultor. O artista está descalço. A obra não pode ser soerguida. O ócio. Essa é uma abertura. A máquina não o quer. Ele é perigoso. É tempestade. Arte e ócio são ativos suspeitos e em suspensão. É preciso manter os nucleados, os gordos pacotes da burguesia. Fecham-se todos os canais, trancam-se todas as saídas. Impotência, controle, usura. O direito se torna engodo. Os tentáculos do capitão-mor condensam os incautos. Armadilhas sórdidas punem os desavisados. Produzem-se anomalias. No jogo estabelecido, as cartas já foram marcadas. Já se sabe o vencedor. Mas qual a vitória? A profundidade. Ir fundo. Enquanto não se chega aos abismos do desconhecido, nem tudo de controla. É preciso extrair o mais puro fio, a mais pura molécula para que haja total determinação da vida. Os artefatos não conseguem esse feito. O artesão sim. Esse pode acessar, ainda que parcialmente, imensidões do inexplorado. Há lugares no Ser e do Ser que não há acessos a não ser por ele mesmo. Os entes perspectivam a ontologia do Ser. Inacabada obra. Emaranhado constructo. De dor em dor, de pé a pé, de passo a passo, de riso em riso, de verbo em verbo. Perspectivado tempo do agora fazendo o depois. O viver autêntico não se entrega. 

NOGUEIRA, Valdir
Db.Nog 

quinta-feira, 7 de abril de 2011

NATURALIZAÇÃO DA BARBÁRIE



É comum. É normal. É assim mesmo. Sempre acontece. Não tem jeito. A barbárie está naturalizada. Crianças morrem de fome, na pobreza, na miséria e isso é normal. Outras ficam horas, dias, meses nos corredores dos hospitais a espera de uma ajuda que talvez lhes chegue a tempo ou quem sabe, nunca lhes chegará. Isso é natural. Tem que esperar e agradecer por conseguir uma vaga no corredor. É o único jeito. Muitos pequenos e pequenas mendigam nas praças, nas ruas, nos becos das grandes e pequenas cidades sem ter para onde ir e onde ficar. Sentem fome e frio; ficam doentes e apodrecem em meio ao desprezo tendo como anestesia para tudo isso a droga, o álcool, o fumo, a prostituição. Mas fazer o quê? Isso é assim mesmo. Não mudará. Já estamos acostumados. Milhares de meninos e meninas são violentados de diferentes formas enquanto cães e gatos são tratados como reis e rainhas, vivem do luxo e da luxúria. Coisa muito natural para quem pode. O resto é resto, é lixo, é sobra humana. Normal para quem não pode. Alguns são explorados, maltratados, humilhados, deixados de lado sem ter quem lhes ampare, sem ter quem lhes dê abraço, afeto e carinho. Isso sempre acontece. As anormalidades sociais se tornaram acontecimentos normais e é natural que seja assim. A sociedade está anestesiada. Está ou estava? Será que o choque provocado pelo ato assassino na escola carioca tirou-a do invólucro que a envolvia? Mas qual sociedade estava cristalizada? A da redoma criada por poucos, ou aquela que inventou formas de naturalizar, normalizar a barbárie pelo fato de já não conseguir mais eco para seu grito de socorro? Uma olha de longe, outra sente de perto. O que fazer? Seja o que alguém quiser. É a primeira vez que vemos algo tão cruel acontecer assim na realidade das escolas brasileiras. Mas, e o que já aconteceu na Candelária, nos morros, nas favelas e em muitos outros lugares? E as atrocidades que ocorrem dioturnamente e não se tornam manchetes porque não interessa falar e noticiar a normose instalada? Talvez estejamos todos acordando um pouco tarde, ou quem sabe, despertando em tempo. A normalidade da anormalidade naturalizada havia por bom tempo nos colocado num sono quase mortal. E aquelas crianças que tem suas infâncias roubadas, seqüestradas, assassinadas pelas horas que ficam diante das telas dos computadores, matando sujeitos virtuais? Ou ainda, aquelas que se trancam nos quartos psíquicos porque os quartos, salas e outros espaços de suas casas, seus lares já não lhes são seus, dada às formas violentas com que são ou foram tratadas? A barbárie no RJ pode ser um reflexo do espelho de tantas outras barbáries que entram nos lares de diferentes formas e por diferentes meios. Essas e outras formas de crime contra as crianças já estavam naturalizadas, já se encontravam num estado de normalidade em nossa sociedade. É triste e dolorido que tenha que ser o grito desesperado de 12 adolescentes assassinados o motivo pelo qual a sociedade brasileira desobstrua a barreira que havia lhe ensurdecido e, a mais, que sirva como elemento para retirar o véu que a impedia de ver e sentir a dor de tantas outras crianças vitimadas, assassinadas de outras formas e, por já estarem em estado de normalização e naturalização, muito pouco se fazia. Espero que não tenhamos que enfrentar outro dia bárbaro como este neste país para entender que as coisas não são assim mesmo, que isso não é normal e que sempre aconteceu e vai continuar acontecendo. Se já havíamos nos acostumados com o não tem jeito, quem sabe agora possamos juntos, enquanto sociedade irmanada com essas famílias e muitas outras, gritar: HÁ UM JEITO! Que a vida e não a morte nos ajude a encontrá-lo.Que isso não se repita em escolas e em qualquer outro lugar desse país que nos pertence.
 

NOGUEIRA, Valdir.