quinta-feira, 24 de março de 2011

(RE)TORNAR



Corpo e alma nem sempre conseguem suportar os espinhos. Difícil compreender a dor. Muitas são as tentativas. Os caminhos se encurtam. A volta demarca um fim. Sentir o que já foi sentido. Não querer repetir o vivido. Tempos sempre carregados de esperança. Resistir e não se entregar. Existências vivem demoras. Barulhos distantes, ruídos que não cessam. Querer a liberdade tão desejada. Sentir o pulsar do coração e da respiração sem precisar abandonar-se. Dor incomparável, a das ausências. O inalcançável e inatingível é a impossibilidade possível. Passo decisivo, firme e certeiro. Entregar-se ao desespero não pode ser a única porta. Há outras clareiras, outras centelhas de vida. Pode ser dolorido deixar, nas pegadas do passado, o que o presente desenhou. Uma ação necessária para que outros traçados sejam feitos. Uma junção de forças e energias alimenta o alvorecer. O tempo escapa. A razão não aceita o determinismo. O destino é a negação da surpresa, do acaso. Entre o “pode haver” e o “se houver”, há uma brecha, uma fissura. Há um espaço-lugar para o que já é. Retornar pode ser a mais difícil das tarefas existenciais, mas é necessária. Não se retorna tal qual se estava no ponto de partida. O retorno pode ser uma nova partida; um recomeçar. O (re)tornar é a ação do verbo tornar – sentido de fazer, concretizar, realizar. Tornar realidade. A volta pressupõe concretude. Definição da vida. Retornam-se da guerra, das lutas, dos embates, de viagens, trabalhos e aventuras. O retorno é movimento dialético e complexo. Flecha que segue, ao mesmo tempo, dois sentidos. Lança com pontas afiadas em suas extremidades. Retornar, enquanto ato de tornar é igual onda que não cessa de ir e vir.  Retorna da praia em direção ao mar; do mar em direção a praia num constante processo de mudança e transformação. O retorno é provocativo, desinstalador. Não é negação, mas re-invenção. 

NOGUEIRA, Valdir.
Db.Nog. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

As duas escadas


Galgar degraus. Subir e descer. Estar no alto. Sentir o chão. As escadas conectam dimensões. Elas produzem efeitos diversos, segundo o ponto de vista de cada um. Elas levam de um lugar para o outro. Transportam de um ponto ao outro. As escadas são muitas e muito diferentes. Para uns, elas são metáforas, para outros, analogias. Algumas são lineares, outras complexas. Algumas definem ambientes, outras definem vidas. Algumas seguem lógicas naturais, outras seguem a pura racionalidade. Para alguns, elas são apenas utilitários, para outros, são palcos de fortes acontecimentos. O que representa a escada para cada vivente, para cada existência fluída, nesse cosmo social e planetário? Talvez representem passagens, transgressões ou transcendências. As escadas, em cada forma, em cada lugar e contexto, são sempre possibilidades. Podem indicar de onde parte e para onde vai aquele que por ela passou. Passa-se por muitas escadas ao longo da vida. Nos diferentes tempos do existir, convive-se cotidianamente com elas. Estão em todos os lugares. Algumas, muito visíveis; outras, mais escondidas. Algumas delas quase imperceptíveis. Pelas escadas circulam universos imaginários, fantasias e ilusões. Nelas e com elas se podem fazer experimentos capazes de mudar o curso de uma vida. Escadas guardam registros históricos. Elas podem abrir frestas capazes de produzir recordações e sensações muito singulares. Muitas escadas emocionam. Outras compõem cenários de momentos únicos. Escadas enaltecem. São nobres. Com elas se vivem momentos de pura ludicidade, poesia e prosa. Vive-se o gozo da arte e da criação. Há certo poder que move esse artefato, essa moldura, essa construção sociocultural. As escadas promovem, sem querer, encontros e desencontros. Nelas a diversidade e a singularidade se misturam e se mesclam. Elas são híbridas. Passam pelas escadas, os sonhos, as possibilidades, as esperanças, os desejos, as vontades, os segredos, os mistérios do que existe e preexiste. Não importa o tamanho, a largura ou o material do que são feitas, as escadas fazem parte de estruturas e mundos muito específicos. Alguns passam pelas escadas cheios de intencionalidades, outros, completamente vazios, sem vida. As escadas são espaços carregados de afetos. Ajudam a pertencer, a presentificar-se.


Pós-escrito

As duas escadas que encontrei certo dia me possibilitaram pensar sobre como elas estão presentes em minha vida e também, sobre como estou no meu presente, no meu agora após ter passado por elas. Foi um momento único, numa tarde ensolarada.

NOGUEIRA, Valdir.
Db.Nog.



terça-feira, 8 de março de 2011

Lucidez


Os meus mais nobres momentos de lucidez são aqueles em que os outros pensam que estou louco. E como vivo esses momentos? Igual a criança que recém chegou ao parque. 

NOGUEIRA, Valdir.
DbNog. 

DOS ELOS PATERNOS

A mão de minha mãe e a minha mão - mostrando-me de onde e como se faziam os fios que teciam as redes de pesca dos meus avós. 

Quero iniciar esta escrita, direcionando-a a todos nós que nos aventuramos por novos caminhos, outros horizontes com um pensamento de Paulo Freire que considero muito significativo. Esse educador brasileiro, carregado de esperança e sonhos, assim se expressou em uma de suas obras: “Sonho não é coisa de maluco. Sonho é coisa de quem vive e de quem existe – existir é mais do que viver – e sonhar é uma necessidade humana. Sonhar com um projeto de vida”. Nesse dizer-sonho de Paulo Freire, quero dizer coisas de todos nós, das alegrias, dos encontros, das histórias, das conquistas, da esperança e da vida que carregamos.
Nossos pais sabem que somos especiais; que há muita vida e sonho em nosso existir. Sabem do valor que representamos pela singularidade de nosso viver, pela possibilidade que existe e persiste em cada um de nós. Para eles, existimos. Sabem que esse existir como bem nos afirma Freire, é mais do que viver. É marcar, é tornar-se presentificado em todos os momentos, em todos os instantes, em todos os cantos, espaços e lugares por onde circulamos, onde aprontamos as nossas algazarras, onde se ouviram os nossos choros e gargalhadas; onde sentiram os nossos abraços; perceberam os nossos olhares, entenderam os nossos pedidos de ajuda; ouviram as nossas falas, vozes, saberes – tudo isso se fez e faz existência. Portanto, coexistimos. Estamos juntos e permanecemos juntos, mesmo estando distantes, mesmo estando em outros lugares. Quem é pai-mãe sabe que esses lugares do existir-com nos conectam, nos aproximam pelo sonhar, pelo pensar e pelo agir.
O tempo do existir é sempre agora, é sempre hoje. É sonho carregado de projetos de vida. Nossos pais sabem quando começamos a dar os indícios ao “por quê?” e ao “para quê?” chegamos nesse mundo. Com eles, ensinamos e aprendemos. Aprendemos que agradecer é importante, que amar é sublime, que sorrir é vital, que apoiar, cooperar, respeitar e ajudar é fundamental nessa forma de vivermos nossa humanidade.
Na coexistência, podemos fazer da vida uma nova possibilidade. Torná-la esperançada como a fez Madre Tereza de Calcutá. Transformá-la. Ampliamos o horizonte do viver, descortinando a imensidão enxergada por Luther King que bravamente disse para si e para tantos outros “I have a dream”. Dizer do sonho e torná-lo concreto é ver o quanto a vida é imensa, o quanto ela pode ser mais e melhor. Ser mais digna e melhor vivida, ser mais instigante e melhor compreendida. Ser simplesmente, mais!
Ao buscar esse ser mais, podemos nos questionar: será que a vida é um lugar? É uma flor? Podemos e devemos continuar questionando para que novas perguntas continuem aparecendo e nos levando para frente, sem ter que nos calarmos com as respostas. Sem termos que silenciar nossas aptidões, nossas habilidades, nossas angústias, nosso ser e existir no mundo. Mundo em que a vida não pode ser concebida como mercadoria, produto, e objeto. Uma verdade incontestável. A vida não se vende, não se compra, se vive. Se vive de forma simples, coerente, prudente. Se vive na partilha, na ajuda, no encontro com o outro que também é vida.  A vida pode ser imensa, pode ser sonho, pode ser esperança, pode ser possível em cada lugar-mundo, em cada espaço onde houver existência e onde as pessoas sonham com o existir-possível.
Possível como as curvas que encontramos ao longo do caminhar e que nos fazem mudar de direção, nos fazem ver pela lente do passado que somos todos responsáveis nessa construção do modo de vivermos como humanos. Elas têm o brilho do nosso modo de ser. São tão importantes quanto os meandros de um rio que conectam um percurso ao outro de modo que uma margem pode ver a outra, uma realidade pode se deparar com a outra. Nossos pais nos fazem ver curvas, ver lados, ver margens, ver o que muitas vezes não víamos. Ver que a vida é ter coração igual ao de Gandhi!
Quantas vezes o coração bateu forte com nossas conquistas? Quantas vezes nos emocionamos com um simples obrigado pela vida; quantas vezes sentimos que já não éramos apenas filhos, mas pessoas singulares, com identidades próprias, únicas convivendo e trocando experiências com o mundo? Todos continuam em nós, mesmo indo a outras direções e essa é uma linda dinâmica da existência. É sua contradição, seu devir, sua possibilidade.
Essa possibilidade que depende de quando e aonde formos, onde estivermos e como lá estivermos. O onde depende do que fomos e do que desejarmos ser; o como depende dos sonhos que alimentamos e da esperança que trazemos; o quando depende sim, do agora, do hoje, de um lançar-se para frente, do ser projeto! Pois o hoje, o agora não marca o fim de laços que se firmaram na convivência, eles se ampliam e se elevam para outras dimensões, para outros horizontes. Só temos o hoje em nossas mãos. O ontem já foi e o amanhã ainda não chegou.
O hoje com todo o seu potencial de conectar a complexidade da vida à complexidade dos diferentes modos de ser, de viver e olhar para o mundo. Um olhar especial, verdadeiro. Projeto que se traduz em alegria capaz de produzir SONHO e POSSIBILIDADE, pois isso não é coisa de maluco, é coisa de gente que pensa e que acredita; que tem esperança e que não desiste; que se mostra e que EXISTE!
Quero fazer uso das palavras de Pedro Demo, quando afirma que em uma convivência, em uma existência feliz, “Deixa saudade o momento particularmente intenso, a profundidade vivenciada na passagem, o encontro limitado de envolvência infinita”. Assim foi e é a história-vida de todos nós em nossa história-vida com aqueles que amamos - um momento intenso que deixa saudades pela infinita envolvência presentificada.

NOGUEIRA, Valdir
DbNog.

Pós-escrito

Os fortes ventos contrários que sopraram na experiência vivenciada com minha família, foram os que mais me impulsionaram a seguir minha trajetória. Em muitos momentos eles voltaram e agitaram o meu viver, mas não fizeram com que eu desistisse da vida. Pelo contrário, continuaram a ser força propulsora. A vida com os pais é sempre carregada de forças estranhas e muitas vezes, quase inexplicáveis. Vivem-se experiências únicas. A família sempre foi meu porto seguro, mas é sempre bom estar em mar aberto. Um dia desses, fiquei observando, por bom tempo, a respiração vital de minha mãe durante seu sono da tarde, no sofá da sala. Uma respiração difícil por seus problemas pulmonares, mas carregada de esforço-vida. Noutro, meu pai abraçou-me e me deu um beijo de alegria pelo reencontro. Beijo que supera marcas de um tempo já findado – momentos existenciais singulares que só quem os vive é capaz de compreendê-los.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Putrefação em vida


Odor putrefato coexistente. Vida cambaleante, deslegitimada. Privilégios são exacerbações dos corpos decompostos em vida. Odores e dores enchem odres tornados insignificantes. Vermes antisociais esperam, nos limites do corpo, os limites da vida. Produz-se ansiedade e necessidade. Medo e morte. Não há tolerância e compreensão. Anunciam-se aos gritos, mentiras e ilusões. Corporalidade esgarçada, negada. Cifra usurpadora. Abutres esperam a queda do desvalido. Tudo e nada são partes da mesma conspiração. O poder mágico é disfarce, engodo e mito. Uma dada lógica cria miséria e dependência; cria desajustes e insanidades. Pode existir em plenitude aquele a quem o viver não passa de mera abstração? O esforço é visceral. Luta-se contra purulências que emergem da inoperância. Hospedeiros incoerentes agem como sanguessugas. Roubam a natureza da natureza. Extirpam a pulsão e o élan vitae. Viver no presente, com o que não foi escolha própria no passado, é condição de débito. Estigma sombrio. Espectro de mãos em delito. Sono perene rompido pela fome. Uma fome que anseia força e vitória. Impõem-se regras e normas que não ampliam o viver. Impõem-se antividas, eutanásias forçadas. Onde está a couraça da justiça? O que fizeram desse emblemático e superficial repouso dos tolos? O real, tal como ele é, causa náuseas. Difícil suportá-lo. Precisa-se de mecanismos; precisa-se de conjecturas para definir o modus operandis da soberania. Apodrece a carne daquele que vive no jogo do pseudopoder. Soberbos saem incólumes do confronto e tiranizam a massa, as sobras, os manipulados. Os incapazes e insuficientes são jogados de um lado para o outro. Os proliferadores de covas se agrupam em seus ninhos tecidos a fios de ouro. Carruagem de pedra para o corpo gélido, sem vida. Translado suave para corpos artificializados - ostentadores da vida falseada. Drama que se repete em cada instante – o da minimização do viver colocado em celas e nas masmorras. O viver encarcerado arrasta-se em direção a uma luz que não existe, caminha rumo a insustentável sobrevivência. É sobra, resto, dejeto. Anti-odores auxiliam no convívio. Sangra-se corpo e espírito. Máquina que não reconhece sentidos, não sabe dos significados. Operador que não cede ao suborno e a feitura de moribundos. É preciso coragem e ousadia para não se entregar ao cheiro entorpecente. É preciso reinventar a si mesmo para não cair nas ciladas do criador de destinos. É preciso criação e autoria de espaços existências próprios, legítimos. A não-originalidade do viver produz putrefações. Produz sombra e lápide. Jazem os espíritos dependentes; vivem os espíritos nobres. Espíritos livres. A nobreza em ser o que se é sem tinturaria. Tarefa mortífera, mas necessária. A existência não é passagem para o paraíso. É linha que se escreve com caneta atômica. Verbos com capacidade de implodir edifícios levianos. Anti-odores.

NOGUEIRA, Valdir
DbNog