domingo, 30 de janeiro de 2011

Eco







A vida se torna mágica quando se descobre que você é o alquimista.


NOGUEIRA, Valdir.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Estar e não ser, ser e não estar: vida que passa


Momentos estruturais que demarcam as territorialidades do estar e não ser, do ser e não estar. Emaranhados impõem desordens e ordens no estar-sendo entre espaços-tempos caóticos. Desequilíbrios inquietantes coparticipam de ebulições singulares. A vida passa. [...]. O volátil nega a duração, a multidimensionalidade do estar-sendo. Estigmatiza-se a presentificação.

            Um ponto zero que marca a vida é aquele representado pelo não-estar e não-ser. É o ponto em que o traço característico é a vida enquanto passagem volatilizada. Passa-se pela vida e deixasse a vida passar. Passar sem sentir, sem se mobilizar, sem se inquietar, sem ser. Uma vez, após mais de um mês sem ir ao encontro da minha analista, refleti sobre as ausências de mim mesmo.
            Essa parada para me ver refletido no que estava fazendo comigo mesmo me colocou diante de um ponto zero fundamental: o ponto que me levou ao sentido do valor que estava dando a minha vida.  Ao finalizar minha dissertação de mestrado, em 2003, escrevi que quem não é para si mesmo não pode ser para os outros. Eu não estava sendo para mim. A pergunta que me fiz colocou-me diante do espelho da vida, me fez zerar. Precisava me olhar, precisava procurar por mim, precisa de um reencontro comigo mesmo. Precisava Ser e Existir enquanto sujeito único, enquanto singularidade.
            Não é raro encontrar pessoas que sem pensar a si mesmos, sem se olhar, se perdem na existência, vivem uma vida que apenas passa. Vivem um tempo-espaço volatilizado que parece devorar a existência. Vivem sem ser e estar. Quando estão em determinados lugares, espaços, não são. Quando procuram Ser, não estão porque fogem de si, dos outros, do mundo. A vida é suprimida. Querem gritar e não gritam, querem amar e não amam, querem sentir e não se permitem. O Ser que habita em cada um de nós, o que somos e que precisa emergir do nosso interior, grita, pulsa, exige mudança.
            A vida não é unidirecional, não é uma reta, uma única via. É múltipla, é carregada de dimensões. Quando zeramos, o ser que há em nós, clama para se ver refletido, balbucia para se sentir ouvido. É uma escolha, é uma opção, é uma decisão se ver, se olhar, se sentir. Nos presentificamos quando somos, quando estamos inteiros, quando não nos escondemos. Como é bom quando nos reencontramos, quando nos achamos, quando nos vemos.
            Olhar para si é a oportunidade dada numa dessas paradas que a vida nos permite, num desses pontos que surgem nas desordens e nos desequilíbrios. Fugir, esconder-se, subtrair-se é estigmatização da presentificação. Estar presente de corpo inteiro, ser em sua multidimensionalidade é ampliar os muitos nós e sentidos que tramas as redes nas quais a vida esta sendo tecida. Hoje a vida não pode apenas passar. Ela tem que ser e estar. Deve presentificar-se.

NOGUEIRA, Valdir. 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Antivida e agoras inexplicáveis


A vida enquanto eco do ethos humano, insiste, persiste, resiste. A antivida desiste. Entrega-se à pseudo-existência. Os agoras inexplicáveis são construtivos.

            Um dos participantes da minha pesquisa de doutorado foi um professor de Geografia que muito admiro e respeito. Admirável por sua coragem e ousadia; respeitado por sua crença de que o mundo pode ser melhor, de que é fundamental continuar insistindo, mesmo quando muitos parecem já ter desistido da luta. Em um momento da entrevista que fiz para coletar dados para a tese que estava escrevendo, o professor falou sobre a dificuldade que os jovens e adolescentes enfrentam em relação à crença em uma cidadania possível, um agir cidadão consciente e responsável.
            Perguntei o motivo e ele falou sobre a desistência. Disse que os alunos já estavam cansados de solicitar ajuda a outras instâncias da escola e por não serem atendidos, desistiam e não continuavam suas reivindicações; outros não insistiam mais em pedir aos professores que conversassem com eles sobre suas notas, pois para estes elas deveriam ser apenas para os momentos de conselho de classe; outros ainda, falava o professor, já não resistiam mais ao sistema que os fez repetir mais de uma vez a mesma série, as mesmas lições, os mesmos conteúdos, os mesmos discursos e se entregavam, alguns, ao isolamento e silêncio, outros, ao abandono e descrença.
            Imerso num movimento de produção da antivida, o professor falava que continuaria acreditando que suas aulas, seus trabalhos, seus diálogos com os alunos e colegas poderiam, de alguma forma, ajudá-los a superar os obstáculos impostos. Alunos e professor lutavam para existir enquanto se produzia a pseudo-existência. A falsa vida produzida na escola tinha que dar lugar à vida em todas as suas dimensões, sentidos e significados.
            O ponto zero para esse professor e alunos estava sendo produzido pela antivida, pela não-vida que se apresentava na desistência. O que fazer diante de alunos desacreditados? Como continuar, mesmo sabendo que alguns já nem resistem mais? Qual direção tomar? Para o professor que conheci nesse período de estudos, a insistência numa vida cidadã diferenciada estava marcada pelo encontro entre ele e seus alunos; a persistência seguia o traço do diálogo e da troca de experiências de vida que estavam naquele universo da sala de aula; a resistência se dava pelo fortalecimento dos vínculos estabelecidos para além dos muros da escola. Era preciso, a partir do ponto zero produzido, encontrar uma saída, um caminho para que mudanças efetivas pudessem acontecer em suas vidas. A antivida que produzia desistência, fazia professor e alunos, nesse ponto, produzir resistência.
            Todos os dias, milhares de pessoas são levadas a desistir de seus sonhos, seus ideias, suas crenças; são forçadas a não insistir, não resistir ao que lhes faz existir falsamente. Vivem a pseudo-existência. Um filho roubado pelas drogas, um casamento dilacerado pela desconfiança, uma amizade exaurida pelo individualismo, um namoro estagnado pela mentira, um aluno minado pela produção do fracasso, entre muitas outras situações e experiências resultantes em antividas, produzem mortes, abandono e desistência.
            Um pai que ama seu filho não desiste, insiste, persiste, resiste e vai ao seu encontro esteja onde estiver. Não há resistência mais poderosa do que o amor. O amor incondicional produz agoras inexplicáveis. Produz vida que ecoa na Ethos Humano. O amor produz instantes capazes de ampliar os sentidos da existência que anseia por resistência e que não se entrega, não se cala, não se abandona. Amor entendido como aceitação do outro como legitimo, único, inigualável; capaz de aceitar e aprender com as diferenças.
            Em 1999 tive uma perda irreparável. Minha avó paterna faleceu de um câncer que a fez sofrer em silêncio por cerca de três meses. Setembro a novembro foram seus últimos tempos nesta terra, foram seus dias a menos com a família e amigos. Sabendo que ela estava doente, fui morar com ela para ficar mais perto, para estar mais próximo, para ajudá-la a realizar um último sonho – ela queria aprender a escrever o seu nome. Esses dias a menos se tornaram dias a mais. Dias de resistência, de insistência e persistência. Dias de agoras inexplicáveis.
            Minha avó, por conta da vida no campo e mais tarde da pesca – trabalho de meu avô, nunca aprendeu a ler e nem a escrever. Esse direito lhe fora negado. Num desses agoras inexplicáveis da vida, ela me disse que era lindo ver seu neto estudar e que gostaria muito de aprender a escrever seu nome. Nesse período eu estava para terminar minha especialização em formação de professores. Não perdi tempo. Disse a ela que seria seu professor e que a ensinaria. Um dia após o outro, uma letra após a outra eu tentava de muitas formas, ajudá-la a escrever, a registrar um nome na folha em branco. Com as mãos trêmulas pelo Parkinson ela tecia os rabiscos, fazias seus riscos, arriscava os riscos do nome.  Às vezes parava e tinha que ser colocada na cama, o câncer roubava a cena, roubava o nosso tempo, o agora fluía de outra forma. Alguns dias se passavam até que ela pudesse voltar a tentar escrever. Nesse tempo, recebia visitas, ficávamos conversando, trocávamos ideias. Eu ouvia seus risos, suas gargalhadas; via também suas lágrimas e o gemido da dor sendo suportada. Ela não reclamava. Resistia, insistia, persistia em viver. Queria viver. Queria outros agoras, queria terminar sua tarefa, seu registro, sua escrita. Queria deixar sua marca, seu nome, sua identidade. Em meados de outubro ela conseguiu. Escreveu seu nome. Sorriu para a vida e depois se entregou. Ficou até o início de novembro suportando a antivida produzida pelo câncer. Já não podia mais resistir. A vida parecia zerar. Um novo ponto era produzido com muita intensidade e dor. Era preciso enfrentá-lo. Era preciso seguir insistindo. O registro ficou gravado na folha de papel que já não estava mais em branco, mas repleto de rasuras, riscos trêmulos, rabiscos que indicavam que alguém que resistiu a dor esteve ali deixando suas marcas, um pouco de sua história – traços de sua resistência e insistência.
            Há diferentes formas de se produzir antividas: seqüestros, doenças, roubos, humilhações, falsidades, exclusão, negação. Há também diferentes formas de se promover a vida: resistindo, insistindo, persistindo. Mesmo sentindo dor, mesmo trêmula pelo Parkinson, o momento das tentativas de escrita do nome próprio produzia agoras inexplicáveis em minha avó e em mim, produzia sentido, produzia um existir em comunhão. Quem desiste de si e dos outros já não vive mais, o que vive é a antivida, a pseudo-existência. Antivida e vida coexistem, estão presentes nos muitos agoras que não se explicam do existir humano. Insistência e resistência nos faziam olhar para os horizontes, para além do que vivíamos.
            Os pontos zeros produzidos a partir das antividas precisam ser olhados como instantes únicos, como agoras inexplicáveis que recriam as existências.  Lembremos, por exemplo, das populações no Chile, no Haiti, no Brasil, na África, na Índia e em tantos outros lugares do mundo – pessoas que resistem à fome, aos desastres, às catástrofes. Resistem porque acreditam que tudo que persiste e insiste é vital. A vida é insistente e por assim ser, é resistente. Não se entrega sem luta, sem realização de sonhos e desejos.  A vida se refaz, se reinventa em agoras que não se explicam. Os agoras são produzidos em cada instante de vida, em cada novo horizonte que se descortina, em cada raio de Sol que surge tecendo as manhãs de um novo dia, um novo recomeço. 

NOGUEIRA, Valdir. 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Conversas Presentificadas: Cactus e Gaia - Sobre pensar e sentir a vida


PARTE I

Cactus e Gaia, diante de uma experiência de vida que completa uma década, entram num dialogo fascinante e atual. Mostram perspectivas de vida que são atuais e que nos fazem pensar o modo de vida hodierno; sobre como nos constituímos e os sentidos que damos ao viver, ao ser, ao sentir e ao pensar.

E assim iniciou o diálogo:

Cactus se pronuncia: Ver e encontrar minha amiga de estudos e diálogos incríveis. Gaia respondeu: Fiquei emocionada. Prepare-se para nossas conversas porque eu agora estou focada no tema SABEDORIA. Cactus disse: E eu na LIBERDADE. Ela continuou: E na vida contemporânea. Estou pensando a liberdade e a complexidade, falou Cactus. Perguntas que me desafiam: livre porque complexo ou complexo livre? Ela respondeu: Interessante. Cactus se questiona novamente: Você é livre em sua complexidade ou a complexidade de seu existir te faz livre? Gaia Respondeu: Nos meus estudos entra isso também. Meus estudos são independentes. Cactus se posicionou: Isso é ótimo! A relação todo-parte. Singularidades, especificidades, unicidades. O uno-múltiplo e o múltiplo-indivisível.

Gaia continuou: Meu foco é no desenvolvimento das pessoas, independente dos papeis sociais. Cactus exclama: Você é ousada mesmo! E Gaia: É desafiador! Não estou presa em instituições. Cactus concorda: Libertar-se das instituições é o melhor caminho para ser feliz. Veja: liberdade! Gaia fala livremente: É por um tempo. Para expandir meus estudos. Porque não somos fora das instituições. Então preciso de um tempo fora. E Cactus diz: há sempre uma grande intencionalidade. E Gaia: Para depois retornar. Fui sufocada na última instituição. Então preciso reestruturar isso. Cactus não se contém: muito bom! Que processo lindo! Que maravilha de organização, desorganização, reorganização – a autopoiese acontecendo. Gaia reafirma: Estou usando isso, inclusive.

Cactus recomenda um livro para Gaia e diz: Lindo e necessário para nós, os loucos. Loucos por um mundo possível. Gaia investe em seu modelo de descoberta de si: Organizei assim minha orientação: autoconhecimento; auto-organização; autogerenciamento. Desmembro isso num processo. Cactus exclama: Que beleza! Gaia complementa: Oriento e também vivo o processo. Cactus retoma: É uma auto-hetero-descoberta. Gaia vê o horizonte do caminho sendo vivenciado: Cheguei num momento da minha vida que tenho que me descobrir. Cactus explode encantado: Nossa! Isso é mais lindo ainda! Mais desafiador ainda! Gaia coloca uma dúvida existencial, entra num universo de incerteza necessária: Agora como pensar em mim? Estou um pouco amedrontada. Cactus, nesse diálogo duvidante, pronuncia: Agora é como dar conta da sua grande pergunta, aquela que em todos esses momentos vividos sempre veio, foi e voltou. Cactus e Gaia mergulham no pluriverso da dúvida e da indagação; mergulham nas grandes questões que a vida lhes apresenta. Gaia afirma: É em torno dela que estou empenhando todos os conhecimentos: empíricos e teóricos.

Cactus diz: Como sempre conversamos, há uma força movendo tudo isso. É momento de um reencontro. Gaia e Cactus falam sobre um encontro entre ambos para partilhar a vida e as ideias de forma presentificada.  Gaia retoma a ideia de processo e busca e diz: Preciso construir esse percurso. Porque parece simples, mas não é. Cactus resgata ideias familiares aos dois em seus muitos momentos de troca e responde: Em hipótese alguma. No simples está o complexo, o dialógico, a multidimensionalidade do ser e do existir. Gaia afirma com contundência: Sim. E Cactus, numa lógica complementar reafirma: Isso é desafiador e me encanta! Gaia responde enternecida: Você nem imagina o quanto isso também me encanta. Cactus fala de uma escrita: Eu e os meus outros eus. Gaia se posiciona sobre o processo experienciado: Vivenciar isso com atenção e cautela em todos os seus momentos, significa conduzir outros. Cactus continua insistindo nos eus: A Gaia e os tantos outros eus dela convivendo em um só e agora se redescobrindo um outro novo eu. Ela completa: Que vivem também a mesma experiência. Estou na dimensão do sensível. Cactus diz: É uma dimensão que nos coloca em contato com o vazio.

Gaia entra no núcleo do nó de seu tecido: A dor do corte do vínculo. Sei que vou viver bem essa fase sem mascarar. Cactus busca um ponto dessa rede que é um dos nós: Lidar com a falta. Ela é necessária no crescimento, na descoberta de si e do outro.  Gaia se posiciona com astúcia: Ela que dará a diretriz para a próxima fase. Por isso me amedronta um pouco. Gaia continua e entra no tema de Cactus quando fala do encontro que terão: Vamos discutir essa questão da liberdade em todos os sentidos e sobre a sabedoria para administrar esta vida nova. Cactus confirma a proposição de Gaia e diz: Que maravilha. A liberdade, para mim, sempre foi uma grande questão e eu não sabia. Igual a sabedoria para você!

Gaia não esquece dos laços: Como sempre, sintonia eterna. Cactus afirma: Sim, isso. Gaia retoma falando sobre a convivência capaz de romper barreiras: nosso exemplo transcende ao sentido real de tempo e espaço. É uma presença constante. É incondicional. Cactus olha essa vivência como um rompimento: Isso mesmo! Rompemos com os paradigmas mecanicistas. Somos prova disso. Gaia retoma o tema da dor: Lembra a nossa dor na despedida? Cactus, ao lembrar do vivenciado com Gaia em outros tempos e espaços, diz: Sim, é ligação que transcende todas as barreiras e dimensões. Isso foi terrível. Gaia se posiciona: Mas foi necessário.

O dialogo parece não acabar: dor, separação, rompimento, convivência, trocas de energia etc., mesmo longe um do outro, as trocas deixam Gaia e Cactus ainda mais vivos, mais próximos, mais presentes. Gaia retoma: Crescemos e hoje somos testemunhas dessa situação. Dessa experiência. Uma década. Cactus fala: Por isso a dor e a separação às vezes nos afetam, mas sabemos que continua o encontro em outras dimensões. Isso tem que ser brindado! Uma década! Gaia confirma: É verdade. Cactus diz: uma década de vida no pleno sentido do existir. Gaia responde: Será maravilhoso. Cactus concorda: De fato! Uma ética responsável com o existir do outro! É lindo! Gaia esclarece tal sintonia e entendimento, a partir de uma lógica coerente com seu viver e seu existir: É porque quando nos ouvimos não existe padrão de avaliação. Nos construímos juntos. Cactus afirma o posicionamento de Gaia: Não há padrões. Perfeito! Gaia vai além: Também nos permitimos desconstruir. Cactus assume esse posicionamento, essa lógica e afirma: Os indicadores dessa construção histórica são outros. A desconstrução sempre necessária ao viver.

Gaia define: Somos eternos inconformados. Cactus concorda: Somos mesmo! Gaia segue: E sempre nos posicionamos na busca de algo, do desconhecido. Cactus lança seu olhar para suas forjas pessoais: Primeiramente somos inconformados com o que vivemos pessoalmente; nosso ser nos confronta todos os dias e tempos. Gaia, na seqüência da dialógica existencial, afirma o dito: É isso. Principalmente isso. E aí está o sentido, a priori, de liberdade para mim. Cactus não titubeia e diz: Perfeito! Gaia aprofunda: Eu me dou o direito de ser imperfeita. De pensar e repensar. Está dentro de mim. No íntimo do meu ser que sempre está em construção. Cactus também assume esse posicionamento de incompletude, de construir-se sempre: Me refaço numa constância, numa dinâmica irreversível! Gaia concorda e define: Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Cactus entra na mesma dança: Eu também!

Gaia relembra: Como nos velhos tempos, risos e lágrimas. Cactus concorda e diz: Dar conta disso é uma fazeção que não tem fim. A vida é assim. Choramos juntos, rimos juntos, construímos histórias, nos decepcionamos, lutamos. Gaia se pergunta: Ainda podemos desfrutar disso. Será que outros vivem isso? Não conheci ninguém com uma história assim. Gaia fala de uma escrita juntos: Escreveremos ainda algo juntos. Cactus responde: Uma outra proposta que subsidiará a forma de olhar para o ser e o viver. Gaia anuncia: Que será eternizado. Cactus exclama: Amo a ideia do eternizar! E também do presentificar. Veja, mesmo longe, estamos mais presentes do que nunca! Gaia confirma: Verdade. Cactus também: Explicar isso, jamais! Não precisa! Gaia, assim entende essa experiência do existir: É muito maior do que nosso entendimento. Cactus recorda uma lição apreendida com Gaia: Como você me disse uma vez: não precisamos justificar algumas coisas. Elas são porque são. Você me disse muito séria: não se justifique, o que está feito está feito! Como aprendi isso! Gaia se coloca: Essa foi minha maior aprendizagem e ensinamento também. Cactus diz: Sim, são as marcas que deixamos! O bom de tudo é que certo ou errado, ninguém pode tirar isso de você!
O dialogo continuará em outro momento. Fim da primeira parte.


NOGUEIRA, Valdir (Org.).
COLONHESI, Geozani Fátima.









quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Existências negadas





Assinatura da Ata de Defesa da Tese de Doutorado - UFPR/2009






Formas e tempos existenciais, quando enclausurados nos autômatos, se negam. Existências negadas. [...] A existência embrutecida renasce na estética antinegação.   


            Muitas pessoas vivem enclausuradas nos moldes que foram forjados para suas vidas. Não podem ser, não podem estar, não podem viver o que escolheram viver. Outras são negadas pelo que são e pelo que desejam e aspiram vir a ser; algumas são negadas porque vivem o que outros determinam ser a sua vida. Esses determinismos, clausuras e modelos mecanicistas que impõem uma dada forma de viver, impedem homens e mulheres de ser mais; amputa-lhes a descoberta dos seus potenciais.
            Culturalmente, dadas as condições de vida de muitas pessoas, a negação apresenta-se como dominação e poder de uns sobre os outros. Isso não é e não pode ser a regra. A vida sempre encontra um meio, uma saída. Ninguém é o que não quer ser porque tem que ser. Cada um é o que deseja ser se quiser ser. Podemos e devemos ser autores de nossa própria história. A ideia colocada no ditado popular de que “pau que nasce torto, morre torto” não serve e não pode ser levado ao “pé da letra” para o ser humano. Há sempre uma escolha, há sempre outra direção, há sempre outro caminho. Não podemos aceitar as condições nas quais, muitas vezes, nos colocam. Não podemos viver automatizados. Não seria vida, seria prisão, seria negação do existir.
            Quando estava no ensino médio, sempre que ia para o colégio, no início da noite, via passar por mim o ônibus que levava os estudantes para a universidade. Em pensamento eu dizia: “Um dia estarei lá”. Sabia que isso parecia impossível, sabia que minha família não tinha condições financeiras de bancar uma vaga na universidade. Mas eu queria, eu desejava fazer o vestibular. Queria ir para a universidade, porém, sem ter naquele momento, como me manter. Meu pai, funcionário público – motorista na prefeitura; minha mãe, cozinheira em um restaurante no centro da cidade. Passei no vestibular. Chegou o dia da matricula e eu não tinha dinheiro para fazê-la. Custava caro. Minha mãe, ao ver minha aflição foi até o restaurante onde trabalhava e pediu um adiantamento para me ajudar. Após fazer o pedido ao seu patrão ouviu o mesmo dizer: “Filho de pobre entra na universidade, mas não termina”. Isso foi muito forte. Ela me contou o que havia ouvido. Eu disse a ela: “Vamos ver do que o filho de pobre é capaz”. Produziu-se um ponto zero.  
            A pobreza é uma condição, não uma determinação. Ela marca a negação dos outros em muitos países no mundo todo. Pior que a pobreza material é a pobreza de espírito, a pobreza de caráter. Naquele momento, minha mãe e eu enfrentávamos o ponto zero colocado pela nossa condição de vida material. Um ponto que me fez ir além do que estava determinado pelo outro; fez-me enxergar, no impossível, o possível; ajudou-me a acreditar no inacreditável: eu posso.
            Havia uma clausura e um modelo de vida sendo impostos. No entanto, viver a condição de pobreza material não fazia de mim e de minha família pobres espirituais. Minha mãe sempre acreditou no potencial da educação escolar e não seria, naquele momento, dada às condições que vivíamos que desistiria de ajudar o filho a ir além dos determinismos sociais. Fiz minha matricula e potencializei meus sonhos. Arranjei um trabalho, depois outro e logo estava atuando em uma escola. Minha família toda foi envolvida para me ajudar com as despesas do curso – trabalhos de campo, viagens, materiais e tudo o mais que era exigido na graduação em Geografia. Dedicava-me para superar os obstáculos que surgiram ao longo da jornada iniciada. Quando tudo parecia difícil, olhava para o que já havia superado e continuava. Depois da faculdade veio a especialização; após a especialização, o mestrado; terminado o mestrado veio o doutorado e a vida não parou só porque me disseram que filho de pobre não pode concluir uma faculdade seja quando e onde for. Ela continuou mais intensa, mais desafiadora, mais carregada de força.
            Quando me coloquei diante daquele ponto zero – enfrentar a luta ou desistir dela, a decisão não poderia ser outra: fui lutar. O filho de pobre foi além do que lhe estava sendo imposto. Superou um dado modelo colocado socialmente. Como isso foi possível? A possibilidade estava justamente no momento de enfrentamento da negação da própria existência. Eu não poderia aceitar a negação de mim e da minha família; não poderia deixar que a imposição de uma condição social me fizesse menos - um incapaz, a massa de manobra. Havia uma possibilidade, havia um caminho, havia uma direção – enfrentar a batalha, ir para a guerra, combater o determinismo, fazer do meu sonho uma possibilidade. Eu escolhi empoderar o sonho e torná-lo realidade.
            Nesse momento, entre o tempo de escrita e leitura dessas linhas, muitas pessoas estão sendo negadas, muitos jovens estão sendo aniquilidos, muitos homens e mulheres estão sendo encarcerados, enclausurados em modelos sociais que negam e fazem as suas vidas desesperançadas, sem sonhos, sem possibilidades. Outros estão sendo levados a pensar que não podem; que não tem condições; que não dão conta; que não são capazes. Alguns têm suas vidas roubadas por serem obrigados a fazerem o que não querem por não permitirem que vejam outras formas de forjarem suas próprias vidas, seus projetos, seus lugares no mundo.
            Ainda que tudo isso aconteça, ainda que nos digam muitas vezes: “Filho de não pode”, é preciso dizer: eu posso, nós podemos. Esse instante do ponto zero que se apresenta na negação de si, que se mostra na automatização da vida é o tempo que nos é dado para perceber que essa mesma vida negada, usurpada, automatizada é capaz de se reencontrar. É capaz de metamorfosear-se, de viver uma alquimia.
            Não se pode desprezar o potencial criativo e desejoso que existe em cada um de nós. Não se pode negar a si próprio quando se ouve que a única opção é “morrer torto”. Há outras opções, há outras formas, há outras escolhas a serem feitas. Por isso, chegar ao ponto zero não pode ser encarado como a terminalidade, a finitude do viver, do existir. Pode e deve ser enfrentado como o tempo-instante de se permitir acreditar numa nova escolha. As existências negadas e levadas aos pontos zeros do viver são e podem ser existências renascidas quando encontram em si e nas suas lutas, nas suas crenças, nos seus valores o que as faz mais. 
            Quando eu passava por uma grande favela numa cidade do Brasil, por volta das 7h da manhã, via um menino uniformizado e com sua mochila nas costas descer um morro a caminho da escola. O que fez os pais dessa criança acreditar na escola? É a necessidade de ter o filho cuidado e educado por um tempo em uma instituição que tem uma prática social importante na sociedade hodierna ou a crença de que o filho pode mais e, ao poder mais, se faz mais com a escola? É a vontade, o desejo, a necessidade e a escolha em superar a condição de vida na favela ou o sonho de que outro mundo pode ser construído a partir desse ato – ir a escola? A vida na favela pode ter colocado alguns pontos zero para essa família da grande cidade, mas ao zerar eles não paralisaram, não impediram o filho de acreditar nos impossíveis-possíveis, de sonhar além do que já sonharam. No interior da favela eles lutam contra os modelos automatizados que enclausuram a vida. Lutam a partir das escolhas que fazem.
            Ainda que neguem nossa forma de ser e existir, não podemos nos anular. Zerar não é estagnar. É ver mais longe, ver fundo, ver largo, ver grande. O ponto zero deve ampliar nossa visão de mundo e de nós mesmos.

NOGUEIRA, Valdir. 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ponto Zero

           Há acontecimentos na vida que nos fazem parar, nos fazem ficar, por alguns instantes, inertes no tempo. Criam em nós uma profusão de pensamentos e ideias que nos fazem mergulhar no caos. Nessa parada não atingimos o Aleph ou o centro do Universo; ficamos em contato, de fato, com um ponto que nos é determinante. Ponto que nos ajudará a definir as próximas escolhas, os próximos passos, a outra forma de continuar a viver. Esse ponto eu chamo de zero. O ponto que indica que é hora de recomeçar.
            Quem já não viveu situações em que as finanças, os relacionamentos familiares e amorosos, os afetos, as buscas, os desejos, os projetos foram zerados? A vida chega ao limite. Algumas pessoas decidem parar a vida justamente quando não conseguem mais olhar para além do que viveram, do que planejaram, do que lhes fora “determinado” viver. Outras, porém, quando chegam ao ponto zero, quando chegam ao limite de seus limites, quando não há mais o que fazer e nem para onde ir, resolvem silenciar por completo. A vida se cala, os sonhos se desfazem, a esperança é decretada morta.
              A ignorância da existência de si, o decreto de que não existimos, a violência anunciada no desprezo, provocam grandes rupturas, grandes vazios. Essas situações levam homens e mulheres, a zerar a vida, a parar e reorganizar o viver. Para quem, ao esperar um encontro, vive a experiência do desencontro e do abandono, tudo parece desabar, tudo parece ficar sem rumo. Quantos se perguntam: Por que eu? O que fiz? Por que nasci? O que há de errado comigo? Por que tudo é tão difícil?
            As perguntas vão abrindo caminhos para um novo tempo que precisa brotar. Abrem espaços para que, no instante zero, a vida possa se reorganizar e sair renascida do turbilhão de acontecimentos que, ao invés de promovê-la, empoderá-la, a tornam fracassada e sem significado.
            É preciso perceber que há uma grande possibilidade nos muitos vazios que vivemos, há grandes impossíveis a serem realizados nos silêncios que nos paralisam. No ponto zero há o inacreditável, há o impossível-possível. A grande descoberta a ser feita. Há aquelas pessoas que, zerando suas vidas, buscam, a partir desse ponto, encontrar o sentido do sentido de estar vivo; se esforçam de forma sobre-humana para iniciar um novo tempo, uma nova fase, um outro movimento.

NOGUEIRA, Valdir. 

Matemática do tempo em três cenas


Vida - um tempo carregado de agoras. Instatentes manifestados, mostrados em momentos do existir. Um dia a mais pode ser um dia a menos. Um dia a menos pode ser um dia a mais.


            Primeira cena - Estava trabalhando com um grupo de alunos do ensino fundamental. Um adolescente sempre dava um jeito de me irritar, de provocar a turma, de chamar a atenção para que o tempo de aula fosse outro tempo. Ele queria ser notado, ele precisava que o olhassem. Um se transformava em muitos quando os outros o seguiam. Pensei em desistir, já não queria mais estar naquela escola e com aquele grupo de alunos. Já não estava acreditando mais no meu projeto de vida e de formação. Porém, no instante zero, quando todos saem e fico no silêncio da sala, quando estou diante das paredes e dos trabalhos sobre minha mesa, quando me deparo com o vazio, quando a experiência docente chega ao seu ponto-limite, a vida resolve tomar outra direção.
            No dia seguinte, quando iniciávamos nossos trabalhos, pela manhã, antes de qualquer outra ação, falo ao grupo: “Um dia a mais é um dia a menos que temos para partilhar nossas vidas e esse dia a menos poderá ser um dia a mais se soubermos viver melhor esse tempo que estamos aqui”.  O ponto zero do dia anterior me levou a pensar sobre o sentido da vida de docente com aquele grupo de alunos. Passamos a nos ouvir, a ser mais amigos, a compartilhar a cada inicio de aula, um pouco de nós mesmos. Todos precisávamos de atenção, todos precisávamos ser ouvidos. Essa parada, esse instante no tempo e no espaço me fez pensar sobre o que significa viver um dia a mais quando esse dia se torna um dia a menos.
            Segunda cena – Após trabalhar com os alunos de uma universidade, no período noturno, chegava em casa por volta das 23 horas. Às vezes havia um prato sobre a mesa e algumas panelas no fogão – era a janta que estava preparada me esperando. Outras vezes, por conta dos problemas em casa, isso nem sempre era possível. Algumas vezes eu tinha a companhia de minha mãe e dos sobrinhos – que na época tinham entre 5 e 8 anos; em outras, era eu e o silêncio da noite, pois todos já dormiam após um dia de trabalho, de estudos e brincadeiras. Antes de me organizar para dormir, passava no quarto dos meus sobrinhos para vê-los dormir e pedir aos anjos que os protegessem.
            Certa noite ao visitá-los durante o sono, fiquei observando a respiração de cada um deles. Em um intervalo de tempo muito curto, percebia o movimento do peitoral e da vida pulsando com a entrada e saída de ar. Foi um tempo de contemplação e um tempo que me levou ao ponto zero. Um ponto que me mostrava o valor da vida. Cada noite a mais de trabalho era uma noite a menos com meus sobrinhos, mas também, cada noite a menos se tornava uma noite a mais ao vê-los crescer, ao vê-los respirar, ao vê-los dormir, ao vê-los comigo. Eles estavam ali, estavam vivos, estavam em casa. Aquele instante de observação, aquele tempo de ver e sentir a vida fluindo ajudava a continuar, ajudava a encontrar forças onde pensava não existir; ajudava a entender que todo dia a menos poderia ser um dia a mais se eu soubesse vivê-lo, se eu soubesse aproveitá-lo intensamente, seu eu não paralisasse. Ver e sentir a vida num respirar me colocou no ponto zero. Colocou-me diante da singularidade daquele momento, diante da existência do outro. Esse ponto zero me dava pistas para a vida continuar fluindo como um rio.
            Terceira cena – Uma amiga de juventude estava para receber a visita de uma amiga de Itabuna – Bahia que vinha rever os amigos do Sul. Resolvemos nos reunir para, no último dia de sua estada em nosso Estado e em nossa cidade, celebrar o momento do encontro, o momento da alegria de rever amigos que há tempos não via. A festa foi na casa de minha amiga - onde ela estava hospedada. Preparamos tudo e vivemos aquele momento de encontro como o representante de muitos outros que viria. A presença dos amigos era o presente ofertado a nossa visitante. Terminada a festa, quando todos já haviam saído, ficaram a visitante, minha amiga e eu. Era momento de eu me despedir da visitante que após uma semana, estava retornando para sua cidade-natal. Após um abraço demorado e de sentir as lágrimas banharem nossos olhos, minha amiga olhando para mim, me disse: “Um dia também vou viajar para ver você chorar assim”.
            Um dia foi o tempo que tivemos. Foi o dia de preparo da festa de despedida da amiga que ela recebera. Um dia foi o tempo que tivemos para celebrar a vida com aqueles que amamos. Um dia foi o instante no tempo que nos levou para o ponto zero. A visitante de Itabuna viajou na manhã seguinte e na noite desse mesmo dia minha amiga faleceu num acidente terrível. Como havia me dito, foi viajar para eu chorar. Eu não pude vê-la. Ela ficou deformada. Sei que ela viu minhas lágrimas. Chorei muito! Aquele dia foi um dia a mais, mas também foi um dia a menos. Se soubesse, viveria aquele dia de preparo da festa, de encontro com os amigos, de contemplação de seu sorriso, seu olhar, sua voz de forma mais intensa e com mais sentido. Um dia a mais foi um dia a menos. O a mais do dia seguinte trouxe a sua morte.  Estava eu e tantos outros no ponto zero. A vida parava. Como continuar? A vida zerava com a morte. Era tempo de rever tudo, de reorganizar tudo. Era tempo de recomeçar de outra forma.
            Os pontos zero surgem de forma inesperada, se projetam a nossa frente e em nossa existência de diferentes formas. São oportunidades. Quantas pessoas, em seus dias a mais não conseguem viver o sentido de, ao se tornarem dias a menos, fazê-los ser mais. Vivem sufocados negando-se e negando a existência de si com os outros, com o mundo. Se eu soubesse que minha amiga viajaria para não mais voltar, faria os dias a menos serem dias a mais e quanto mais os dias passassem avançando no tempo, mais tempo de vida teríamos intensificado nos dias a menos.
            Hoje, meus sobrinhos são lindos jovens e, cada dia a mais com eles, mesmo que sejam dias a menos, são sempre mais, são sempre carregados de significados, são sempre dádivas, são intensos. Não desperdiço olhares, sorrisos, abraços, afagos, escutas e silêncios. Não me fecho as brincadeiras, as danças, aos conflitos. Não deixo de fazer pipoca, de ir à praia, de correr de um lado para o outro, de comer o pudim recém tirado do fogão e partilhado em três no mesmo prato. Não os impeço de ser e estar, de viver, de sentir o pulsar da existência. Ao invés de muros, somos pontes uns para os outros.
            Cada dia a mais que vivo com alunos que passam por minha vida, são dias a menos, mas com sentido de mais. Mais oportunidade para conhecer gente diferente de mim; conhecer outras culturas, outros credos, outros lugares e com outros valores. Dias a menos sendo dias a mais para nos ajudarmos, para nos fazermos mais gente, mais humanos, mais sujeitos de nossas histórias. Os dias a mais não podem ser torturantes. Se eu não quiser viver o dia de amanhã como vivi o meu hoje, o que fiz para viver bem o hoje? Que a mais foi acrescentado no meu dia a menos? Qual a intensidade do hoje em minha vida? O hoje é o nosso dia a mais e também o nosso dia a menos. No hoje encontramos o ponto zero. O amanhã depende do que faremos a partir dele. Zerar também é uma possibilidade de mais quando tudo parece menos.

NOGUEIRA, Valdir.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Alquimia de um amanhecer no jardim da vida

Nas primeiras horas daquele dia primaveril o Sol despontava irradiante tocando todos os seres, tempos e espaços do jardim da vida. Um jardim que nem sempre se consegue descrever, dadas às minúcias de tamanha complexidade. Dada à intensidade da força que o alimenta, o torna único e mágico.
Cada raio do Sol apontava para um aspecto, um ponto, um detalhe do jardim. Refletia muitos sentidos pelos diferentes tons e cores que passavam a coexistir com o brilho daquela luz. Por maior que fosse o esforço para descrever tal beleza, não se conseguia chegar à totalidade do colorido, da profusão da vida que emergia de forma tão magnífica naquele início de um novo dia.
De um lado, as roseiras se abriam para a vida a lhes trazer um colorido singelo e delicado; do outro, lírios bailavam ao vento, exibindo sua rara beleza. Muitas outras flores iam surgindo com o raiar do dia e despertando em si, a vida. Em cada uma delas, uma forma de tessitura, de bordado, de feitura.
Igual ao fazer da vida nas flores, ia se fazendo a vida na terra, no ar, no orvalho, nos caules, nos espinhos, nos brotos e nos outros pequenos e grandes seres que, no jardim se viam ao se fazer com ele.
Um frescor acompanhava aquele amanhecer multicolorido e dinâmico. Não se podia apenas passar pelo jardim ou olhá-lo de longe por alguns instantes. Era preciso sentir-se nele, estar lá. Ser também um jardim. Ser vida a brotar da experiência de viver; ser cor experimentando o significado de pertencer ao micro e macrocosmos; ser tecido se transformando em peça de rara existência.
Tal como a costureira dá vida nova ao novo modo de ser do tecido, o Sol dá vida nova ao novo modo de ser do jardim a cada novo amanhecer. Nada se repete porque o dia é outro. A vida já não é mais a mesma para cada uma das flores e dos tantos outros seres que fazem parte dessa humilde e frágil teia. A vida se renova, tal como se renova o casulo que se faz borboleta pronta para explorar o ar carregado de vitalidade.
Forjado em tempos-espaços múltiplos e entrelaçados, o jardim da vida não se finda. Finda o dia para que outro possa chegar com sua alquimia.

NOGUEIRA, Valdir.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Existir fluído


Vida, um lapso de tempo. Fluxo contínuo, irreversível. Um tempo carregado de agoras. Instatentes manifestados, mostrados em momentos do existir. Um dia a mais pode ser um dia a menos. Um dia a menos pode ser um dia a mais. Formas e tempos existenciais quando enclausurados nos autômatos, se negam. Existências negadas.  Na loucura, no vazio, na devassidão, no incompreensível, no insólito mais e menos coexistem. A falta e a presença requerem dias a mais para transcender dias a menos. O hoje é uma imensidão, uma fluidez ininterrupta. Uma teia inacabada, possível. A linearidade é antiética. Mais e menos são lógicas que desafiam espaços-tempos existenciais. Onde? Quando? Como? Momentos estruturais que demarcam as territorialidades do estar e não ser, do ser e não estar. Emaranhados impõem desordens e ordens no estar-sendo entre espaços-tempos caóticos. Desequilíbrios inquietantes coparticipam de ebulições singulares. A vida passa. A existência embrutecida renasce na estética antinegação. Dispositivos estereotípicos iludem, produzem inércias. A vida enquanto eco do ethos humano, insiste, persiste, resiste. A antivida desiste. Entrega-se à pseudo-existência. Os agoras inexplicáveis são construtivos. Marcas no tempo. Espaços produzidos ininterruptamente nos limites dos próprios limites. A fragmentação dos espaços-tempos vitais espelha a corrosão acelerada da existência em sua constância. O volátil nega a duração, a multidimensionalidade do estar-sendo. Estigmatiza-se a presentificação. Carregado de força, o existir flui como um rio. Não há volta. Há possibilidades.

NOGUEIRA, Valdir

Existência pró-vocada

Há espaços-tempos na vida que não se colocam palavras. Os verbos silenciam-se. Grandes vazios. Tão profundos são que não permitem reverberações. Entrelinhas da vida que existem como um não-ser. Sem saber-ser são não se sabendo. O viver encontra formas e arranjos para lidar com o não-controle, com o não-saber gerir-se. Nem formas e arranjos chegam ao universo produzido pelo vazio existencial. Não se alcança o vazio produzido em escalas de grande proporção. De outro modo e por outro ângulo, essa existência vazia e sem palavras apresenta-se e mostra-se nas faltas, nas ausências inexplicáveis. Ela arranca no estar-sendo, a dor. Eleva o espírito e a alma até aonde não imaginava chegar. Mergulha-se num existir doido, no entanto, vital. Silenciado pela ausência que não encontra eco, o existir arrasta-se. Pela falta das palavras, pela ausência dos verbos, pela invisibilidade da presença a vida é marcada. O enfrentamento de si mesmo é o risco que se corre, é o desafio que se trava. O outro mostra a imperfeição do estar-sendo. Lançam-se os eus para os espaços escuros e infindáveis do viver. Trava-se a guerra necessária. A ilusão insiste ser o não-existir. A morte dela também. No combate entre ilusão e existir-não-sendo, a morte é vital. Emoção demente produzida sem uma sapiência que a explique. Inexistência racional e profusão do delírio. Desejo desenfreado capaz de produzir demasias, conflitos, negações. Na incapacidade-capaz de dar conta de si e do outro que produziu um si no eu, a vida explode. Não se podem juntar peças, nem fazer mozaicos. Caleidoscópios emergem nas tramas temporais e nos delírios nodais dos espaços embrionários. O que já foi não é. O que é já foi. O que está sendo pode tornar-se. Vazios carregados de intensos metamorfismos. Violentas intempéries criadoras. Tornar-se exige graus elevados de demência e eloqüência; têmpera e desvios. O que em tempo não foi, pode ser. Os vazios são criativos. Existir exige pró-evocação. Eus evocados, pró-vocados – ethos lúdicos.

NOGUEIRA, Valdir.

Sobre as três vontades

A recursividade de Heráclito, “viver de morte, morrer de vida” é uma constante na vida de todo ser humano. Todos os dias há mortes. Todos os dias a morte acompanha cada um de nós na estrada da vida, nos caminhos da pretensa necessidade de ser. Morrem desejos, morrem vontades, morrem sonhos, morrem esperanças, morrem ilusões, morrem células, morrem muitas coisas. A cada passo dado, a cada novo horizonte há sempre sinais de coisas, pensamentos, ações, afetos, desafetos e outros mais que morreram; que deixamos morrer. A vida não morre apenas na sua totalidade – se extingue em sua existência, morre aos poucos, morre em partes, morre em tempos muito diferentes. A afirmação de que um dia a mais é um dia a menos e, nessa direção, um dia a menos pode ser um dia a mais, também cabe para essa lógica circular e dinâmica da morte em vida e da vida em morte. Pode ser um dia a mais dependendo de como se vive esse a mais no dia e de como as mortes que nele ocorrem interferem em sua dinâmica existêncial – o dia coexiste. Não se carrega o peso das coisas que ficam pelo caminho. Elas devem ser decretadas mortas. Não se carrega o peso dos pensamentos por muito tempo, um dia eles também findam; também morrem, uma vez que não são mais portadores de vida para o pensante. É fundante a lógica da morte quando ela segue seus passos deixando vir à tona a profusão da vida que precisa surgir renascida, reafirmada. Não se pode encarar a morte como fim da vida em si, mas a morte como prenuncio de nova vida a partir da vida que se refaz com a morte em si, consigo. Três vontades são anunciadas ou são prelúdios de mortes necessárias para que a vida ressurja com mais vigor, com mais desejo de ser. São elas: a vontade de fugir; a vontade de sumir e a vontade morrer. Da primeira se diz que ela é aquela vontade de não enfrentamento de si mesmo diante dos outros, da multidão, do mundo, das coisas que acontecem. A vontade de fugir reflete a ânsia do ser não sendo e ao não ser, busca na fuga um ser. O ser fugitivo de si mesmo. Na segunda vontade, a de sumir, ainda que pareça semelhante à primeira, se difere no sentido de estar, mas em estando, pretende sumir. Ou seja, não estar, não aparecer, não se mostrar, não ser visto, não ser olhado, não querer existir. Ao sumir enquanto vontade acrescenta-se um não existir enquanto ausência de si. O ser se ausenta para não ser notado, não ser denotado. Afasta-se de tudo e de todos para então, tentar se encontrar. Aí habita o desejo escondido de, no sumiço, achar-se, apoderar-se de si mesmo. Enquanto na vontade de fugir há o anúncio do não existir, fuga de si enquanto existência; na vontade de sumir há o prenuncio do existir que some; que se esconde e não quer aparecer. Em síntese, não quer se mostrar para não ser o que se fez do ser enquanto existência imprópria. Assim, na vontade de morrer há o mais puro desejo de ser para si. Com a morte do que não permite ser, não permite existir; com a morte do que não pode e não deve ser há a possibilidade de ser. Há a possibilidade de vida. A morte prenuncia e anuncia a existência provocada. Nesse caso, é fundamental que coisas, desejos, vontades, ilusões, modos de operar, agir e pensar morram para que a vida possa emergir. Tal como morre a semente, a morte do ser em vida para nova vida é fundamental em sentido de que ele possa existir. A vontade de morrer é, nesse sentido, a mais forte vida a querer romper no pseudomundo criado para um existir que se vê a enfrentar a vontade de fugir e de sumir. Com a vontade de morrer vem a vontade de viver de forma diferente, viver em uníssono com a mais pura natureza de ser em si e para si. É como um trocar de pele para as cobras ou como um romper a crisálida para as borboletas, ou ainda, como subir o mais alto das montanhas para a troca de penas das águias. O que é terreno, o que é costumeiro, o que é tornado hábito e rotina já não traz mais vida, por isso, a vontade de morrer emerge a partir das vontades de fugir e de sumir. Não há uma linearidade nessas vontades, apenas elas o são na vida que vive de morte e que morre de vida num dia a mais ou num dia a menos, dependendo de como se olha para tal estágio do viver. Nas muitas mortes dioturnas há mais esperança de vida do que na vida que nega a profundidade das mortes.

NOGUEIRA, Valdir.