quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia das Mulheres. Quais?

Foto: Sebastião Salgado

VIAGEM INTERROMPIDA
Marcas do Tempo
          
Dessa vez a memória não foi para algum lugar do passado nem o passado retornou de algum esconderijo da memória. Assistia ao presente acontecendo. Um tempo carregado de agoras que se desdobravam em falas e tentativas de acerto. Não havia lembranças ou gestos afetivos sendo trocados. O que se ouvia eram o choro e a voz de uma mulher desesperada porque não poderia seguir viagem com seus filhos. Um rapaz de aproximadamente quatorze anos e três meninas com idades entre quinze e quatro anos.
            Toda a bagagem já estava no compartimento de malas – caixas, colchões, sacos com roupas, bolsas e outras coisas haviam sido guardados para que pudessem viajar. Ao acordar com o falatório do lado de fora, o carregador de pedras percebeu que haviam parado em outra cidade. Estava num sono profundo e não se deu conta do tempo que havia passado. O que presenciava era o rosto sofrido de uma mulher tentando seguir viagem com seus filhos.
            A menina, quinze ou dezesseis anos, chorava segurando no colo outra criança de uns dois anos. Tudo indicava estarem buscando sair daquela cidade para tentar a vida em outro lugar. A quantidade de bagagens denunciava essa situação. A mulher aparentava mais que cinquenta anos, talvez fosse mais jovem, mas seu rosto trazia marcas de muitas lutas, batalhas pela vida, por si mesma e pelos filhos.
            O que impeliria essa mulher franzina, naquela hora da noite, a embarcar para outro lugar com os filhos? Será que fugia de brigas e de situações humilhantes vivenciadas em sua casa? Será que tinha uma casa? Estava tentando escapar de ameaças, evitando ser maltratada, judiada?
            Da janela viu que, aos poucos, o ajudante do motorista começava a tirar de dentro do compartimento de bagagens todos os pertences daquela família. Tudo devolvido. A mulher empenhava-se numa comunicação telefônica, mas parecia nada conseguir. O motorista falava e ela fazia sinais de compreender. Quando viu toda sua bagagem no chão, caiu em prantos. O menino passava as mãos na cabeça da mãe e a menina abraçava-a, segurando as demais crianças. Uma cena dolorida.
            Diante do que acontecia, pensou – Quantas mulheres vivem situações desumanas, humilhadas, desrespeitadas, sujeitadas ao silêncio, à violência, ao medo, ao desprezo, ao abandono e tendo que dar conta, por si mesmas, de criar filhos que não são somente seus. Muitas delas em lugares e ambientes que não fazem parte de seus sonhos, de suas escolhas. Outras vivem exploradas e obrigadas a agirem como cobaias e objetos de usos e abusos. Por mais que se tenha avançado nas leis e muitas mulheres tenham conseguido mais espaço e posições de respeito na sociedade, outras ainda vivem em condições subumanas, tendo que enfrentar maridos alcoólatras, patrões desajustados, realidades humilhantes que negam todo o sentido de ser mulher, de ser pessoa, de ser sujeito da própria história.
            A mulher sentou-se sobre as coisas, curvada diante dos filhos e ficou ali enquanto o ônibus seguia em frente. A viagem havia sido interrompida. Aquela figura feminina mostrava cansaço, fadiga, marcas de um tempo pesado em seu viver. A saída daquela cidade talvez representasse o desejo de vida nova, na tentativa de não desistir dos seus sonhos. Por falta de documento de uma criança ela não pôde seguir... Restava-lhe ficar ali para ressurgir do intempestivo fracasso. Tentar era preciso, outra vez...quantas?!
            Pensativo, balbuciou o carregador de pedras – As mulheres contemporâneas vivem outras lutas, demarcam outros territórios, criam outros modos de enfrentamento das crises e dos crimes que contra elas possam ser cometidos, mas isso não é regra. Essa mulher reflete as sequelas de um tempo que ainda não superado, representa o estado de muitas outras mulheres, talvez maioria, que ainda não conseguiram sair do calabouço de um machismo culturalmente desreferenciado...
            ...O equilíbrio ainda não foi alcançado e isso não é apenas questão de justiça ou de igualdade. Pode-se tolerar e superar uma viagem interrompida, mas não se pode aceitar a negação do direito de viver dignamente. O direito de ser mãe como uma mulher deseja e sonha ser. Quando se tira a dignidade de alguém, tira-se-lhe  a alma.
A viagem seguia naquela noite estrelada. Sem conseguir retomar o sono, o carregador de pedras olhava o céu e a lua parecia segui-los mostrando as direções. Ainda pensativo, afirmou para si mesmo – O tempo deixa marcas que não se pode apagar

Do Livro: Carregador de Pedras,
 NOGUEIRA,Valdir.  2012 pp. 122-124.