segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Jardim das papoulas


Se um dia encontrar um jardim igual ao que existiu, será o jardim que os meus desejos e sonhos ajudaram a reconstruir. Um jardim repleto de vida, carregado de sensações indescritíveis. Jardim que foi regado e adubado com gotas de vida e sementes de amor. Não há como compará-lo. Era único, singular. Nele havia muitas possibilidades de encontros, trocas, afagos e olhares. Os risos vinham de longe acompanhados de um semblante eternizado. Doce lembrança. Papoulas coloridas o enfeitavam, o deixavam com um misto de ternura e arte. Era pequeno. Muito pequeno em tamanho, mas extenso, imenso em riqueza espiritual. Nele havia espaços para outros brilhos, outras cores, outros cheiros. Remexer na terra do meu jardim era como remexer na terra do coração tão repleto de vitalidade; tão repleto de alegria. Nesse jardim, tudo que era cultivado florescia. Florescia o cuidado, a gratidão, a cumplicidade, o respeito, os diálogos e as demoradas contemplações. Ficava muito perto da morada habitada intensamente. Muito próximo da janela de onde se podia olhar para ele sem se cansar. Um jardim carregado de sentidos e significados. Os sentidos daqueles que o fitavam e os significados de seu jardineiro. As papoulas floresciam de forma majestosa. Era como se tocassem o mais profundo do ser. No amanhecer e no entardecer, ele recebia o cuidado compromissado de seu artesão. Esse jardim estabelecia elos que nem o tempo, nem a distância, nem a morte puderam separar. Vive repleto de cores nas reminiscências. Não se apagou e nem foi esquecido. Era um lugar da pertença e da presença. Um espaço de comunhão com outros seres; um lugar onde se encontrava a força do existir pertencendo; do pertencer compartilhado. Havia muitos tempos nesse jardim - da coleta de sementes ao alvorecer de uma nova planta e, com ela, o fluir de novas florescências. Tempos que marcaram vida; tempos que ficaram registrados nos esconderijos da memória. Após as chuvas, havia grande alegria entre os muitos pés de papoulas; com os ventos elas bailavam; com o sol, brilhavam. Esse jardim alimentava um universo. Retribuía coragem e energia ao jardineiro. Um jardim repleto de magia. Seu lugar de existência estava demarcado pela copa de um abacateiro – lugar de outras vivências. As experiências vivenciadas no jardim das papoulas foram transformadoras. Elas criavam e recriavam os dias e as noites. Experiências expressas em momentos de transcendência, de superação e coragem. Não havia tempo melhor do que “o hoje” vivenciado em cada novo amanhecer naquele pequeno território existencial. Hoje, em meu tempo presente do existir, foi preciso voltar ao jardim das papoulas para reencontrar a estética da vida. Foi preciso revisitá-lo para não me perder no caminho; foi bom senti-lo, mesmo que em pequenos fleches; em rápidos lampejos. Voltar ao jardim que me ajudou a ser, a fazer-me possibilidade é o mesmo que não desistir de continuar vivendo. É o mesmo que desejar romper muitas vezes com as grades que encerram os desejos, as buscas, as escolhas. Esse voltar rememorado é necessidade de continuidade. É exigência do próprio viver que não desiste de si mesmo. A vida sabe o que não sabe o vivente. O viver encontra sua direção quando o que vive não sabe para onde ir. Não saber para onde ir é desafio que se abre a quem existe na plenitude de cada novo amanhecer. O que vou fazendo de mim é parte do que o jardim das papoulas foi fazendo com o que fizeram comigo num dado tempo-espaço do viver. Esse jardim co-existente que habita no ser que sou, hoje, me fez ser mais. Quiçá a vida se eternize como um lindo jardim de papoulas.


Epílogo

Esse jardim ao qual me referi, nessa reflexão vital, existiu. Foi real. Um pequeno jardim que fiz no quintal de minha pequena casa onde morava com meus pais e irmãs. Um jardim onde cultivei as papoulas que minha avó ajudou a plantar. Bom seria se as crianças, adolescentes e jovens cultivassem seus jardins e fizessem lindas trocas; compartilhassem suas vidas com suas avós. Fizessem arte ao fazer jardins. No meu jardim, não cultivei somente papoulas. Cultivei esperança, fé, amor e possibilidades. Cultivei ética e estética. Cultivei sonhos e felicidade. Esse jardim continua sendo cultivado. Ele é vital. Um lugar onde posso, sempre que precisar, encontrar a mim mesmo, ao que pode me dar direção e servir de referencial. O meu jardim de papoulas mantém viva a criança que fui no adulto que sou. Ele é minha metáfora da vida.

NOGUEIRA, Valdir
dbNog. 

Compartilhando vidas


A vida plenamente vivida, não nega a tristeza, o frio, o escuro, o vazio; não esquece os motivos para se alegrar e sorrir. Na sua dinâmica, se faz teia. Nessa vida assim vivida, a felicidade pode e deve ser entendida como um tempo de espera das coisas que irão acontecer, mas também, um tempo do acontecido; um tempo para o novo, para o desconhecido; um tempo para esperar o tempo; um novo tempo de descobertas, de futurição. Um tempo de ser alegre com as muitas coisas da vida; um tempo para o não-querer fundado em uma motivação impulsionadora de outros horizontes.
Horizontes estes que podem ser sustentados em uma ética ou ainda, em valores que impulsionam o bem viver e o querer viver bem. Alegria por ver que as coisas podem dar certo. Uma perspectiva em que a alegria não se dissocia da certeza incerta - a pergunta que desinstala: como vai ser a vida daqui para frente? Será um tempo de mudanças? Sofrer ajuda a crescer? Crescer é olhar para além do que está posto? É buscar novos horizontes, outras possibilidades de vida na vida em curso? Vida que se descortina e faz pensar e olhar para o tempo de crescer; ver o que é crescer e como crescer; surpreender-se consigo, sentir orgulho com as coisas que consegue fazer e sobre como consegue fazê-las; uma existência agradecida por tudo que a própria vida lhe dá de presente.
 A vida é um acontecimento. Ela não está programada, definida a priori, determinada como autômatos. Enquanto possibilidade, pode ser carregada de companheirismo, de amizade, de presentificação do outro. É bom ter os amigos bem perto e é bom levar consigo, por onde for e onde estiver, a marca da presença dos fortes momentos de convivência. Essa marca do viver mais junto, do viver mais perto, do viver mais presente.
Uma marca que nos enche de esperança, que nos desafia a construir mundos melhores. Mundos carregados de uma intensa felicidade estampada num belo sorriso; num lindo olhar expressando o existir pertencido, a alegria, os sonhos. Os sonhos que parecem não dar conta do tempo que passa rápido; um tempo que já não permite ficar mais tempo juntos, um tempo que segue e que traz novas descobertas, novos espaços, novos horizontes. Horizontes marcados pelas metas que traçamos, pelos objetivos que almejamos alcançar.
A vida, como num caleidoscópio ou num turbilhão de acontecimentos, encontros e partidas, desejos e sonhos se faz mais vida quando temos metas, projetos, lutas. Quando buscamos ser mais e nos permitimos viver mais. Viver melhor. Uma vida desenhada e imaginada para ser grande.
Seguimos nossos caminhos com as marcas que se presentificaram: o riso, o brilho no olhar, o diálogo, a troca, o respeito, o companheirismo, a amizade, a alegria, o abraço. Isso nos torna mais humanos, isso nos fortalece enquanto pessoas que acreditam que tudo pode ser melhor; tudo pode ser diferente, tudo pode mudar. E a mudança vem com o exercício da dúvida instigante. A dúvida da dúvida que tantas vezes nos faz sair dos lugares de comodismo, de conforto e nos lançarmos na aventura do aprender mais, do saber mais. Fazer-se mais. Um saber-ser voltado a um saber-viver e um saber-sentir consigo, com os outros, com tudo que nos cerca.
Aprendemos a duvidar porque não nos consideramos prontos, acabados, finalizados. Somos esses seres em constante devir, em constante processo de tornar-se, por isso, não podemos nos dar como encerrados. Há muito que enfrentar, há muito que fazer para tornar-se, há muito para ser. Ser feliz, viver feliz, buscar a felicidade, descobri-la, encontrá-la, construí-la em cada passo, em cada gesto, em cada novo caminho trilhado. Essa felicidade que nos surpreende e nos faz mais gente, nos ajuda a nos surpreendermos com o simples e o complexo, com o incomum, o inesperado, o impensado. A vida é o maior motivo, a maior certeza de que tudo pode e deve ser melhor.

NOGUEIRA, Valdir.
dbNog. 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Tecendo Redes


Talvez uma das práticas mais importantes seja a do tecelão. O tecelão vivencia no seu fazer, o fazer dos tecidos, das malhas, dos pontos e nós, fazer as redes; o tecido que configura uma tessitura.
No movimento de tecer o tempo, a troca, a escolha, a possibilidade e a vida se tecem e se entrelaçam; existem na concretude do ato de tecer. O tecelão vai dando forma, tom e cor, vai dando identidade à rede e ao tecido que vai se formando, se fazendo rede e tecido. E onde está a importância deste tecer do tecelão?
Bom seria se cada pessoa pudesse ver-se tecelão - autor do tecido e da rede de sua vida, sua história, seus projetos. Cada um pode tecer da sua maneira a sua rede, cada um pode configurá-la do seu modo, mas para isto é importante ver-se na tessitura, sentir-se parte da rede que vai formando, do tecido que vai compondo.
Muitos viventes, em muitos lugares e tempos ficam a olhar para os nós de suas vidas negando-os sem perceber como foram forjados; outros ficam a olhar para a rede na sua concretude e não percebem que em cada malha e em cada nó há outras redes a serem formadas, tecidas.
O que é ser tecelão e rede? O que é tecer nós na vida do tecelão? Um tecido e uma rede contam histórias, contam o que cada tecelão pode ser; o que pode fazer no ato de tecer tecendo-se. Na escola-vida se tecem muitas redes e muitas redes ficaram sem ser tecidas. Muitos nós ficaram por terminar sua relação com a totalidade da rede, outros formaram outras redes, outros tecidos, novos nós.
No dia a dia muita gente vai formando redes: redes que aprisionam e libertam; redes que desafiam e impulsionam; outras se fecham e se abandonam. Se cada pessoa olhar para si e para o outro, outras redes se tecerão. Porém, o modo como se tecerão depende de como se é tecelão, de como se aprendeu ou descobriu a fazer redes. Tecer é um ato criativo. O tecelão cria o tecido que forma a rede e a rede que vai ser tecida é resultado da criatividade do tecelão.

NOGUEIRA, Valdir.  

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Tramas

Costureiras - Tarsila do Amaral 

E quando não há o que dizer, quando não há palavras, quando não há verbos? Quando tudo parece ter sido sugado, suprimido, o quê fazer? Caminhar? Seguir? Enfrentar? Não há como voltar. Assim ficamos quando acontecimentos inesperados nos surpreendem. Quando eventos nos tiram, de súbito, a força que nos mantinha e nos alimentava lançando-nos para além de nós mesmos. Parece que o que estava perto foi para longe e o que estava longe, mais longe ficou. Andar de um lado para o outro. Parar. Mãos sobre o rosto, semblante entorpecido. Os olhos fitam o longínquo. As mãos se tocam sem parar. O corpo parece não obedecer. Tudo fica caótico. A linha de Ariadne não pode ajudar a encontrar o caminho. O mais meticuloso método não pode fazer parar o que se instalou na existência desfigurada. Calmaria. Desespero. Angústia. Um grito se desprende do profundo ser; um pedido ecoa da alma. Vida. É preciso vida e nada mais. A vida há muito roubada, surrupiada de diferentes formas. Vida que se fora com outros. Renascer muitas vezes. Fazer-se inteiro em muitos tempos e espaços. Tramar os nós sem desfazer os elos que religam partes e totalidades. É a espera esperançada. Esse tempo do não-dito, do não-verbalizado. O fugidio, o que escapou. O que não ficou não era e não podia ser. Transformação em curso. Vida efervescente. Dispositivos necessários. Reconectam-se elos. Natureza em movimento espiralado. Eventos são perguntas insaciáveis. Acontecimentos são dúvidas momentâneas. Desinstala-se o processo da escolha. Ficar. Sair. Mover. O que produzem os verbos quando não verbalizados? Corpo, mente e alma lutam. Eles coexistem no existir de mim e do outro. O ocorrido, o provocado tem muitas faces. Os rostos não se desvelam. É preciso aprender a dizer não. Não estou, não posso, não quero, não vou, não tenho, não gosto, não preciso. Não, não e não. O espírito elevado aprende a dizer não e sim. O espírito servil aprende a dizer apenas sim. Sim e não são escolhas. Na negatividade do não há uma força propulsora. O não é impeditivo e ao mesmo tempo desencadeador de re-ações. Sim e não são eventos duradouros. Deixam marcas. Sim e não precisam ser ditos para os muitos Eus que habitam em um dado existir. Lacuna. Tortura. Estupidez. Acontecimentos são transitórios. Eventos são prolongados. O primeiro exige audácia, o segundo exige rigor. Não se passa pelo existir, habita-se. O corpo é a morada dos Eus. A mente, uma espaçosa sala dialogal. “Cavalga a ti mesmo” - diria um dos eus para outro eu. “Alcança teu interior projetando-o para fora. Lança-o para o horizonte das experiências cotidianas. Cava igual ao mineiro, as tuas cavernas sombrias e faz emergir o mais puro brilhante que há em teus rochedos”. Exercitar a força vital. Fazê-la intensa em cada tempo e lugar. Cantar, dançar, correr, divagar. O quê impende? Quem? Só os Eus habitantes de mim; só eles podem comigo e só Eu posso com eles. Os eventos nos projetam. Os acontecimentos nos paralisam. Nos eventos, um emaranhado vai se tecendo como se faz o tecer das aranhas. A rede é projeção. Nos acontecimentos, nódulos frívolos vão se sedimentando como se sedimentam as calçadas. O sedimento é passarela. Lápide não desejada. Tocar-se, sentir-se, envolver-se. Demorar-se na contemplação da vida em vida sendo vivida. Respirar, beber, cheirar, amar. Eventos a serem experienciados. O que vier serão fatos. Acontecimentos e eventos nos esgotam e nos evocam. Somos existências evocadas. Vivem-se eventos e tramas.

NOGUEIRA, Valdir. 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Liberdade e Escolhas...

O texto que apresento, foi escrito em novembro de 2009. Nesse tempo eu pensava sobre o sentido de ser livre; sobre o significado de viver livre. É um texto que está em conexão com o texto publicado na madrugada de sexta-feira: Incerto vôo desprendido. Um pensar a vida que abre a madrugada do sábado que vem chegando. 

Tenho pensando na liberdade.
Pensado sobre o que é ser livre.
Pensado sobre saber fazer escolhas.
Sobre viver.

Penso essas coisas porque não tenho me sentido livre.
Porque a liberdade é muito mais do que as minhas escolhas.
Porque a liberdade é muito mais do que meus projetos.

A liberdade pode ser um caminhar na areia do mar.
Um andar pelas ruas.
Um sorriso desprendido.
Um olhar.

Sentir-se livre não é o mesmo que ser livre.
Querer viver livre não é o mesmo que viver a liberdade.
Eu quero, mas não vivo.
Eu vivo, mas não sou livre.

Sou prisioneiro de mim.
Prisioneiro das minhas escolhas.
Prisioneiro do que pensava ser minha liberdade.
Sou prisioneiro do que imaginava me dar vida e liberdade.

Mas não posso ser livre se não me arrisco.
Não posso ser livre se não me permito errar.
Se não me permito viver o incerto.
Se não procuro descobrir o que é ser livre.

Queria que a liberdade fosse uma cor.
Um sabor.
Um desejo.
Uma música.
Uma bebida.

A liberdade pode ser mais.
Pode ser um grito.
Um toque.
Um gesto.

A liberdade não está fora do que sou.
Não mora longe de mim.
Não se esconde.
Não se refugia.
Não se disfarça.
Não se nega.

A liberdade se mostra viva na vida que a deseja.
Se presentifica no ser em si e para si.
A liberdade se espraia.

Busco a liberdade desprendida.
A liberdade corporificada.
Utópica.
Eufórica.
Translúcida.

Se escolho ser livre.
Se escolho viver a liberdade.
Escolho ser eu mesmo.
Escolho o meu espaço.
Escolho a minha forma.
Escolho a minha dança.
Escolho o meu traje.
Escolho as minhas escolhas.

A liberdade é uma chama.
O inimaginado.
Impensado.
Inesperado.

A liberdade é um acontecimento.
Um abraço.
Um afago.
Um diálogo.

É o caos
A ordem e a desordem.
É futuro e presente.
O ontem e o agora.
O antes e o depois.
O pouco e o muito.
O claro e o escuro.

A liberdade é um banho de chuva.
Um vôo noturno.
O sim e o não
O negativo e o positivo
O maior e o menor
O esquerdo e o direito
O verso e o reverso

A liberdade não cabe no papel.
Não cabe na mala.
Não cabe no bolso.
Não cabe na gaveta.
Não se coloca na balança.
Na se contabiliza.

Ela é espaçosa.
É o cosmo.
É uma pulsão.
É um arco-íris.
Um redemoinho.
Um espiral.

A liberdade é o infinito que grita dentro de mim.
É demência, ludicidade e prosa.
A liberdade é o que eu fizer de mim.

NOGUEIRA, Valdir. 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

INCERTO VÔO DESPRENDIDO


A aurora. O precedente. O princípio. O risco necessário. Não podia ser diferente para o pássaro raro. Raridade expressa por sua natureza singular; por sua autenticidade. Pouco restava para a escuridão. O tempo do escuro estava para se desfazer. A aurora precedia o novo amanhecer. A vida pulsava iniciante, tecendo a manhã daquele incerto vôo desprendido. O novo estava para surgir. Emergia do pássaro o sentido daquele vôo, daquela experiência. Da aventura de não negar seu ser terreno e celestial. Um rompimento necessário, uma abertura demarcada antes do anúncio do pêndulo. O horizonte se pintava com outras cores. O escuro ia aos poucos dando lugar a tonalidades revitalizadas. Desprendimento das amarras, das grades e da dependência. O canto vital. Para onde ir? Aonde chegar? Que altura atingir? Com que velocidade? Que direção tomar? Aurora quimérica? A incerteza do vôo era a única certeza. As asas precisavam sair do habitual, do costumeiro, da única certeza estabelecida. Não podia haver mais determinismo; não podia mais haver o predomínio da não-escolha. O pássaro podia se lançar. Havia a possibilidade da abertura, da fresta escondida, ignorada. Os luzeiros da manhã que chegavam, mostravam outros pigmentos, outras misturas sendo feitas no recipiente da vida. Muitas direções para olhar. Alimentar-se antes do vôo? De qual alimento precisava o pássaro ansioso por seguir sua caminhada? Alimentar-se de horizontes, de sonoras sinfonias matinais, de Sol e céu. Um único alimento era-lhe necessário naquela manhã despontada: o alimento do desprendimento de si mesmo. Tal forma de se alimentar exigia desse raro ser, coragem para ousar, criar e sentir-se pássaro. Perceber-se, ver-se pássaro. Acostumado como estava, a chuva já não era mais sentida em sua forma original; o vento não lhe tocava de modo inigualável; a relva não podia ser-lhe o alimento. O mesmo solo, a mesma madeira, o mesmo ângulo da visão impediam-lhe de ser pássaro em sua rara existência. Indecisão tomava o lugar do incerto. Certezas prendiam o desprendido. Caminhos se descortinavam enquanto a aurora se deleitava no novo tempo. Num inusitado instante; num inexplicável movimento o pássaro rompia a manhã. Alcançava as alturas sentido suas forças o levarem para além do estabelecido. Quanto mais alto, quanto mais se lançava, quanto mais rompante era seu vôo, mais perto de si ia ficando. Sentia a energia vinda do bater de suas asas e uma vibração que brotava de seu interior. A aurora cumpria mais um ciclo de sua espiral e o pássaro tecia a manhã em um novo ciclo de sua vida. O pássaro, com as portas da gaiola abertas não era livre. A liberdade não estava apenas em sair da gaiola ou voar para o céu. Buscar as alturas. Não estava em pousar em uma árvore e outra. A liberdade estava no modo de ser pássaro. Passarinhar enfrentando os desafios da mais pura liberdade. A gaiola se rompe no instante em que o pássaro tomou posse de si mesmo. Na incerteza do vôo estava a certeza do renascer do pássaro. Certeza de que desprender-se pode ser uma perigosa aventura, mas também pode ser a mais criativa e instigante viagem ao universo existencial. Pode ser a mais bela conquista ao longo do tecido da vida. Amanheceu. 

NOGUEIRA, Valdir. 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Sobre perguntas e tempo


Perguntas mudam a direção da vida
O tempo avança espiralado
Perguntas e tempo em diferentes compassos transformam o viver

Vida de crisálida que se vai
Tempo de voar que se foi
Direção que se refez

Lindas borboletas cortam os céus
Vivem tempos diferentes
Deixam perguntas em aberto

Olhos vêem o que muitos outros olhos não verão
O tempo de um olhar singularizado
A pergunta dos olhares distanciados

A vida dura o tempo de um olhar e o tempo a eternidade do olhado
O tempo avança espiralado
A pergunta corta céu e olhar, lua e mar

Perguntas abrem espaços e constroem lugares
Levam para longe e trazem para perto
Elas não se calam.   

Perguntas e tempo são sementes
Florescências são tempos que se mostram
Existências são perguntas que eclodem

Perguntas trazem o novo e desvelam o velho
Vidas germinam nas perguntas levantadas ao sabor do tempo
O tempo lança as perguntas da vida.

O tempo não volta
As perguntas não se calam
A vida já não é mais a mesma.

NOGUEIRA, Valdir. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Olhares e percepções de si mesmo






O outro nos define, nos diz quem somos e como somos. Então, perceber-se é buscar na imagem de nós, projetada pelo outro, aquilo que somos. Entre o que o outro diz de nós e o que vemos em nós, nos vemos. Às vezes não nos vemos. Não nos vemos quando negamos o outro, o outro que há em nós e o outro que fala de nós. A percepção de si mesmo, os traços do que se é são confrontados com os traços dos outros. Com os traços de reminiscências, heranças, contextos, tempos, histórias. Para nos percebermos precisamos sair de nós mesmos, nos ver de longe para ver. Nos colocar entre as coisas, os seres, a dor, a emoção, os projetos, os ideais e as ideias. Buscar em si o tecido de si mesmo na história que se vive e faz por entre afirmações, negações, re-afirmações.Perceber-se é um desafio. Quem se percebe, se vê, se aceita, se encontra e, ao se encontrar, encontra o sentido de perceber-se, de ser para si, de ver-se em si mesmo e no outro. Os olhos e olhares anunciam, denunciam, afirmam, negam. Os olhos e olhares expressam dor, alegria, medo, tristeza, contenteza, angústia, inquietação, prazer, busca. O olhar é metafórico. O olhar depende de quem olha, de como se olha, de onde se olha e quando se olha. Diz-se dos olhares críticos, dos olhares doces, dos olhares, negativos, dos olhares negros. Há quem diz que o olhar é uma janela, um espelho, uma lupa. O olhar é inquiridor. Olhar para si mesmo é uma inquirição. Quando olhamos para nós, buscamos pela pessoa que somos, pelo que nos constitui, pelas nossas origens, raízes ou pelo que devemos ser, pelo que seremos. Há muitos pontos em nós, muitas veredas a serem olhadas. Há muito que ver em cada um de nós. Ao olhar para mim, descobri que gosto do que faço porque gosto de mim e este gostar só foi e é possível porque me permiti olhar para o ser que sou. Quem não se olha, não se vê, não se gosta, não consegue se amar – amor entendido como respeito: respeito a si mesmo, ao outro, à vida. Este olhar-ver é minucioso, detalhista, revelador. Revela a inteireza do ser que se é; a inteireza da sua história de relações e interações nos mundos-mundo. Fascinantes são os diversos olhares que nos permitem ver o que somos: olhares do cientista, do religioso, do poeta, do filósofo, do educador, do artista, do economista, enfim, há muitos olhares que nos permitem ver o que somos e como somos.




NOGUEIRA, Valdir. 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Excessos


Os excessos, antividas. Mortíferos. Excessos e demasias são bolores improdutivos. Sufocam e limitam os espaços do viver e do ser, do existir. Tudo que se repete em demasia, estraga, estagna, paralisa. Os bolores deterioram a vida. Não se pode viver sufocado, não se pode viver sem espaço de expressão de si mesmo. Vidas sufocadas passam por processos que deformam e instalam inércias não desejadas. A característica marcante do viver é a fluidez, o rio contíguo que não cessa. A característica do sufocamento é a barragem. Viver limitado, controlado, vigiado não é viver. O viver sufocado é aquele das palavras, dos gestos, das ações, dos pensamentos que não são próprios, não são legítimos. A vida precisa de legitimação, de identidade própria. Precisa seguir seu curso. A liberdade é vitalidade que impulsiona e alavanca o sonhar esperançado. Não vive livre aquele que existe combatendo os excessos, as demasias. O ser livre não precisa do excessivo. Precisa da novidade, do desafio, do incerto. Todo passo vigiado, toda ação controlada não produz incerteza, não produz aberturas. Produz falsificação do existir. A guerra saudável é aquela que produz enfrentamento de si mesmo. A luta para que o eu autêntico surja com força. Não há autenticidade quando se afirma um existir que não existe. Não há autenticidade com as rondas da sentinela, com a demasia da guarda. A vida autêntica exige espaço próprio; exige o não-controle. Há muitos excessos e camuflagens diversas os escondem. Excessos e demasias interrompem ciclos e quebram elos. O autêntico existir reconhece a necessidade de ter olhos de águia, força de urso e velocidade do lobo para não ser neutralizado, para não ser aniquilado em vida. Roteiriza-se a vida em pseudos-contextos do existir demasiado. Lentes moralizantes tendem a definir experiências. Nada existe nesse invólucro. Tudo é sufoco e agonia. Excessos traduzem pensamentos obsessivos. Não produzem saúde, produzem necroses. No mundo dos excessos não há espaço para a Fênix. No mundo da existência autêntica ela é magia e realidade. A demasia sufoca a privacidade, tira o direito de ser, estar, viver. Nega-se o renascimento por si mesmo. A existência é música autêntica, arte singular. O sufocado não consegue alcançar o topo da montanha. É sempre arrastado para baixo. O topo liberta. A descida é constituída da autoria de si mesmo.  No excesso a autoria é mera repetição. O ser autêntico anseia as alturas sem negar a planície. A vida produz vida quando assume seu próprio controle.

NOGUEIRA, Valdir. 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Continua vivendo...



Continua vivendo
Quem nutre uma esperança profunda
Quem se encanta com o sorriso de uma criança
Quem experimenta a magia do inacabado
Quem não se cansa de alimentar a esperança da continuidade humana

Continua vivendo
A pessoa que não desiste de si
Que percorre caminhos ainda não trilhados
Que enfrenta os seus próprios limites e se desafia continuamente
Que entende o sentido da existência

Continua vivendo
Aquele que ensina ao aprender
Que sabe escutar e não somente ouvir
Que vê o mundo como possibilidade
Que acredita na força da solidariedade alimentada na fé do reencontro

Continua vivendo
Quem se descobre fazedor de história
Quem se eterniza nos gestos e nos olhares
Quem se mostra singular
Quem se faz ponte ao invés de muro

Continua vivendo
Quem reinventa a vida a cada novo dia
Quem sente a fluidez da alegria
Quem descobre que seu projeto de vida nutre um projeto de amor
Quem percebe que a felicidade é um tempo carregado de significados

Continua vivendo
Quem vê em Deus uma fonte
Quem se percebe um fio do tecido planetário
Quem se faz vida nas vidas desvalidas
Quem torna realidade o sonho-possibilidade

Continua vivendo
Quem faz da vida uma arte
Quem vê na ciência uma estrada
Quem encontra na filosofia um tesouro
Quem faz da poesia um achado
Quem se permite, nesse tempo do viver, ser cientista, poeta, filósofo e um pouco artista.

NOGUEIRA, Valdir.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

FENDA DO TEMPO


Não se pode abrir uma fenda no tempo que passou. Ele avança. Segue as muitas direções tomadas pelas existências em seus diferentes agoras. Não se pode voltar. Não há retorno aos eventos desencadeados. O que se pode fazer é acessar, na memória, os tempos marcados. Ir aos tempos que ela guarda. Essa guardiã dos instantes de devassidão; dos momentos de caos, ordem, desordem e êxtase. Só há contato pelos fleches do lembrado. Terrível prisão. Querer voltar e não poder; querer reviver e não ser mais possível. Nenhum existir pode ser igual ao que foi. Nem mãos, nem olhos, nenhum dos sentidos podem fazer o tempo retroceder. Em vida, nada pode desacelerar esse ávido corredor. Como dominar esse leopardo que não cessa sua dinâmica? Um dado existir carregado de tempos e desejos guarda a ampulheta que mede experiências vividas. Não há como interferir no que ficou aprisionado nesse turbilhão. Força hercúlea que não se pode dominar. É inalcançável o que foi e o que passou. Nenhum esforço dará conta do regresso, nenhum ourives pode pagar por tal façanha. A existência, em cada fração desse hábil viajante, exige demora. Exige ficar despossuído de si mesmo para tomar posse do jogo. Ansiedade e euforia, energia sendo gerada nas muitas redes temporais tecidas, se fazendo vida. Volta-se ao lócus originário. Não se volta ao tempo original. De cada evento existencial, esse peralta alquímico é único, é singular, é produtor dos sentidos do sentido da vida. Alma, espírito e mente querem o que já não é mais alcançado. Há uma possibilidade. O tempo coexistindo. O agora é crucial. É a mais linda tela a ser criada. A fenda a ser aberta no tempo que se faz co-autor. Co-participe do instante produtor de demoras desejadas. O tempo do hoje carregado de agoras é o que se tem; é a possibilidade do eterno. Essa flecha segue a direção tomada pelo que existe, é e está; pelo que se mostra. Esse existir é tempo infinito enquanto existência finita. A impossibilidade da volta determina a multiplicidade da possibilidade do instante. Nada pode ser desperdiçado. Tudo merece ser pigmento da tela que vai sendo preenchida com o colorido que o momento define. Merece ser perene. A existência que assume seu existir, em sendo, pode ser mais. Ser mais tempo, mais abertura para si no encontro com o outro. As tintas se misturam. A fenda é multifocal. O tempo é fazeção embrionária. Eclosão de eventos. Espelho vital. 

NOGUEIRA, Valdir.  

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Prolegômenos

A Primavera - Monet. 


No prelúdio do bem-viver, o tempo marca as singulares experiências do viver bem.
Vivem bem as pessoas, os seres que tudo fazem para não encerrar a vida sem escrever seus prólogos, sem registrar novas e lindas marcas no presente que outrora se fazia anúncio, se fazia Esperança.

O tempo entre o prelúdio da vida e o prólogo da história do vivente, marca a pura essência entre o bem viver e o viver bem. Em tal ínterim vivencial, metáforas e símbolos de vida exprimem a vida na mais linda utopia, no mais belo projeto: a existência como escrita se fazendo, se tecendo como fazem as rendeiras na mais bela renda ou os pássaros, nos mais belos ninhos.

Para quem a vida é apenas passagem, os prelúdios são apenas desejos e os prólogos irrealidades. Mas, para quem passa pela vida se transformando com ela, prelúdio e prólogo são eternidades sendo elaboradas na constância do bem-viver a vida que se quer viver-bem. 

O viver singular marca, no tempo, a forma como a vida se despraia com simplicidade no universo criador. Tempo sábio capaz de fazer emergir novos prelúdios delineados nos risos da criança que se constrói adulto; nos entrelaços anunciados pelo bem-viver do adulto que no tempo-vida não esqueceu da infância-magia.

Vivem bem os idosos, os jovens, os homens e as mulheres, as mães e os filhos, os avós e os netos, os tios e sobrinhos, os seres que em plenitude são capazes de não silenciar em si a dádiva do amor.

Em cada nascer do sol e em toda flor que desabrocha há lindos prelúdios; tempos únicos que alegram e dignificam outros tempos-vida. Impossível apenas passar pela vida e não sentir as minúcias de cada gesto-vida traduzindo o viver bem de quem se quer bem. Impossível não lembrar dos presentes-vida preludiados como imensas possibilidades pela Sábia Vida nos prólogos que marcam, no tempo, a existência de tempos possíveis de eterna felicidade.

NOGUEIRA, Valdir.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Os Homens

Da Vinci


O texto, a seguir, foi produzido há um bom tempo. Isso pode ser visto na nota de rodapé. Mas o coloquei nesse momento porque ele se faz atual em muitos sentidos da vida. É um texto que nos remete ao sentido do sentido da forma como somos pensados pelos outros, pelas instituições, pelas muitas estruturas sociais e humanas. 

OS HOMENS[1]


Há dispositivos de controle.
Homens se matam pelo poder. Falso poder.
A realidade tem máscaras, máscaras que escondem a pútrida face do real.

Ignorantes jazem no paraíso da pseudoconsciência,
Consciência de saber que não sabem, mas dizem saber.
Falso saber.

O engodo da neutralidade, da imparcialidade esconde os obesos.
Obesos da pseudocientificidade, aquela que não se mostra e fica no suspenso.
Luxúria e vaidade científicas.

Os homens se matam como combatentes
Que esperam a morte na vitória ou a vitória na morte,
Aquela morte já anunciada no decreto, na antivida.

Borboletas cortam perspicazmente o ar carregado de uma dada realidade,
Fazem um vôo desprovido do tempo que escapa.
Apenas vivem os tempos que lhes é dado para viver.

Máquinas óticas assoberbadas garantem a vigília do vigiado insignificante,
Controlam o incontrolável, o significado.
Olhos disciplinados.

Veneno de cobras, de tarântulas ou de escorpiões são mortíferos?
Mais mortífero é o veneno do pensamento que não se mostra.
O pensamento suspenso.

O poder é brincadeira, o jogo é real.
Os dispositivos coexistem nos homens que se enganam.
Homens enganando a si mesmos ao enganar a realidade,
Aquela realidade escondida nas máscaras, no não-poder.

Os homens, tão somente eles.



[1] Escrevi enquanto dirigia. Enquanto dirigia a mente fervia. Depois de tornado explicito o tácito, o alívio. A mente sorria. As justificativas usadas para determinados fins apenas escondem a realidade, a pseudo-realidade. Minha melhor crítica. Valdir Nogueira – novembro de 2006.