sábado, 22 de janeiro de 2011

Sobre as três vontades

A recursividade de Heráclito, “viver de morte, morrer de vida” é uma constante na vida de todo ser humano. Todos os dias há mortes. Todos os dias a morte acompanha cada um de nós na estrada da vida, nos caminhos da pretensa necessidade de ser. Morrem desejos, morrem vontades, morrem sonhos, morrem esperanças, morrem ilusões, morrem células, morrem muitas coisas. A cada passo dado, a cada novo horizonte há sempre sinais de coisas, pensamentos, ações, afetos, desafetos e outros mais que morreram; que deixamos morrer. A vida não morre apenas na sua totalidade – se extingue em sua existência, morre aos poucos, morre em partes, morre em tempos muito diferentes. A afirmação de que um dia a mais é um dia a menos e, nessa direção, um dia a menos pode ser um dia a mais, também cabe para essa lógica circular e dinâmica da morte em vida e da vida em morte. Pode ser um dia a mais dependendo de como se vive esse a mais no dia e de como as mortes que nele ocorrem interferem em sua dinâmica existêncial – o dia coexiste. Não se carrega o peso das coisas que ficam pelo caminho. Elas devem ser decretadas mortas. Não se carrega o peso dos pensamentos por muito tempo, um dia eles também findam; também morrem, uma vez que não são mais portadores de vida para o pensante. É fundante a lógica da morte quando ela segue seus passos deixando vir à tona a profusão da vida que precisa surgir renascida, reafirmada. Não se pode encarar a morte como fim da vida em si, mas a morte como prenuncio de nova vida a partir da vida que se refaz com a morte em si, consigo. Três vontades são anunciadas ou são prelúdios de mortes necessárias para que a vida ressurja com mais vigor, com mais desejo de ser. São elas: a vontade de fugir; a vontade de sumir e a vontade morrer. Da primeira se diz que ela é aquela vontade de não enfrentamento de si mesmo diante dos outros, da multidão, do mundo, das coisas que acontecem. A vontade de fugir reflete a ânsia do ser não sendo e ao não ser, busca na fuga um ser. O ser fugitivo de si mesmo. Na segunda vontade, a de sumir, ainda que pareça semelhante à primeira, se difere no sentido de estar, mas em estando, pretende sumir. Ou seja, não estar, não aparecer, não se mostrar, não ser visto, não ser olhado, não querer existir. Ao sumir enquanto vontade acrescenta-se um não existir enquanto ausência de si. O ser se ausenta para não ser notado, não ser denotado. Afasta-se de tudo e de todos para então, tentar se encontrar. Aí habita o desejo escondido de, no sumiço, achar-se, apoderar-se de si mesmo. Enquanto na vontade de fugir há o anúncio do não existir, fuga de si enquanto existência; na vontade de sumir há o prenuncio do existir que some; que se esconde e não quer aparecer. Em síntese, não quer se mostrar para não ser o que se fez do ser enquanto existência imprópria. Assim, na vontade de morrer há o mais puro desejo de ser para si. Com a morte do que não permite ser, não permite existir; com a morte do que não pode e não deve ser há a possibilidade de ser. Há a possibilidade de vida. A morte prenuncia e anuncia a existência provocada. Nesse caso, é fundamental que coisas, desejos, vontades, ilusões, modos de operar, agir e pensar morram para que a vida possa emergir. Tal como morre a semente, a morte do ser em vida para nova vida é fundamental em sentido de que ele possa existir. A vontade de morrer é, nesse sentido, a mais forte vida a querer romper no pseudomundo criado para um existir que se vê a enfrentar a vontade de fugir e de sumir. Com a vontade de morrer vem a vontade de viver de forma diferente, viver em uníssono com a mais pura natureza de ser em si e para si. É como um trocar de pele para as cobras ou como um romper a crisálida para as borboletas, ou ainda, como subir o mais alto das montanhas para a troca de penas das águias. O que é terreno, o que é costumeiro, o que é tornado hábito e rotina já não traz mais vida, por isso, a vontade de morrer emerge a partir das vontades de fugir e de sumir. Não há uma linearidade nessas vontades, apenas elas o são na vida que vive de morte e que morre de vida num dia a mais ou num dia a menos, dependendo de como se olha para tal estágio do viver. Nas muitas mortes dioturnas há mais esperança de vida do que na vida que nega a profundidade das mortes.

NOGUEIRA, Valdir. 

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