sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Antivida e agoras inexplicáveis


A vida enquanto eco do ethos humano, insiste, persiste, resiste. A antivida desiste. Entrega-se à pseudo-existência. Os agoras inexplicáveis são construtivos.

            Um dos participantes da minha pesquisa de doutorado foi um professor de Geografia que muito admiro e respeito. Admirável por sua coragem e ousadia; respeitado por sua crença de que o mundo pode ser melhor, de que é fundamental continuar insistindo, mesmo quando muitos parecem já ter desistido da luta. Em um momento da entrevista que fiz para coletar dados para a tese que estava escrevendo, o professor falou sobre a dificuldade que os jovens e adolescentes enfrentam em relação à crença em uma cidadania possível, um agir cidadão consciente e responsável.
            Perguntei o motivo e ele falou sobre a desistência. Disse que os alunos já estavam cansados de solicitar ajuda a outras instâncias da escola e por não serem atendidos, desistiam e não continuavam suas reivindicações; outros não insistiam mais em pedir aos professores que conversassem com eles sobre suas notas, pois para estes elas deveriam ser apenas para os momentos de conselho de classe; outros ainda, falava o professor, já não resistiam mais ao sistema que os fez repetir mais de uma vez a mesma série, as mesmas lições, os mesmos conteúdos, os mesmos discursos e se entregavam, alguns, ao isolamento e silêncio, outros, ao abandono e descrença.
            Imerso num movimento de produção da antivida, o professor falava que continuaria acreditando que suas aulas, seus trabalhos, seus diálogos com os alunos e colegas poderiam, de alguma forma, ajudá-los a superar os obstáculos impostos. Alunos e professor lutavam para existir enquanto se produzia a pseudo-existência. A falsa vida produzida na escola tinha que dar lugar à vida em todas as suas dimensões, sentidos e significados.
            O ponto zero para esse professor e alunos estava sendo produzido pela antivida, pela não-vida que se apresentava na desistência. O que fazer diante de alunos desacreditados? Como continuar, mesmo sabendo que alguns já nem resistem mais? Qual direção tomar? Para o professor que conheci nesse período de estudos, a insistência numa vida cidadã diferenciada estava marcada pelo encontro entre ele e seus alunos; a persistência seguia o traço do diálogo e da troca de experiências de vida que estavam naquele universo da sala de aula; a resistência se dava pelo fortalecimento dos vínculos estabelecidos para além dos muros da escola. Era preciso, a partir do ponto zero produzido, encontrar uma saída, um caminho para que mudanças efetivas pudessem acontecer em suas vidas. A antivida que produzia desistência, fazia professor e alunos, nesse ponto, produzir resistência.
            Todos os dias, milhares de pessoas são levadas a desistir de seus sonhos, seus ideias, suas crenças; são forçadas a não insistir, não resistir ao que lhes faz existir falsamente. Vivem a pseudo-existência. Um filho roubado pelas drogas, um casamento dilacerado pela desconfiança, uma amizade exaurida pelo individualismo, um namoro estagnado pela mentira, um aluno minado pela produção do fracasso, entre muitas outras situações e experiências resultantes em antividas, produzem mortes, abandono e desistência.
            Um pai que ama seu filho não desiste, insiste, persiste, resiste e vai ao seu encontro esteja onde estiver. Não há resistência mais poderosa do que o amor. O amor incondicional produz agoras inexplicáveis. Produz vida que ecoa na Ethos Humano. O amor produz instantes capazes de ampliar os sentidos da existência que anseia por resistência e que não se entrega, não se cala, não se abandona. Amor entendido como aceitação do outro como legitimo, único, inigualável; capaz de aceitar e aprender com as diferenças.
            Em 1999 tive uma perda irreparável. Minha avó paterna faleceu de um câncer que a fez sofrer em silêncio por cerca de três meses. Setembro a novembro foram seus últimos tempos nesta terra, foram seus dias a menos com a família e amigos. Sabendo que ela estava doente, fui morar com ela para ficar mais perto, para estar mais próximo, para ajudá-la a realizar um último sonho – ela queria aprender a escrever o seu nome. Esses dias a menos se tornaram dias a mais. Dias de resistência, de insistência e persistência. Dias de agoras inexplicáveis.
            Minha avó, por conta da vida no campo e mais tarde da pesca – trabalho de meu avô, nunca aprendeu a ler e nem a escrever. Esse direito lhe fora negado. Num desses agoras inexplicáveis da vida, ela me disse que era lindo ver seu neto estudar e que gostaria muito de aprender a escrever seu nome. Nesse período eu estava para terminar minha especialização em formação de professores. Não perdi tempo. Disse a ela que seria seu professor e que a ensinaria. Um dia após o outro, uma letra após a outra eu tentava de muitas formas, ajudá-la a escrever, a registrar um nome na folha em branco. Com as mãos trêmulas pelo Parkinson ela tecia os rabiscos, fazias seus riscos, arriscava os riscos do nome.  Às vezes parava e tinha que ser colocada na cama, o câncer roubava a cena, roubava o nosso tempo, o agora fluía de outra forma. Alguns dias se passavam até que ela pudesse voltar a tentar escrever. Nesse tempo, recebia visitas, ficávamos conversando, trocávamos ideias. Eu ouvia seus risos, suas gargalhadas; via também suas lágrimas e o gemido da dor sendo suportada. Ela não reclamava. Resistia, insistia, persistia em viver. Queria viver. Queria outros agoras, queria terminar sua tarefa, seu registro, sua escrita. Queria deixar sua marca, seu nome, sua identidade. Em meados de outubro ela conseguiu. Escreveu seu nome. Sorriu para a vida e depois se entregou. Ficou até o início de novembro suportando a antivida produzida pelo câncer. Já não podia mais resistir. A vida parecia zerar. Um novo ponto era produzido com muita intensidade e dor. Era preciso enfrentá-lo. Era preciso seguir insistindo. O registro ficou gravado na folha de papel que já não estava mais em branco, mas repleto de rasuras, riscos trêmulos, rabiscos que indicavam que alguém que resistiu a dor esteve ali deixando suas marcas, um pouco de sua história – traços de sua resistência e insistência.
            Há diferentes formas de se produzir antividas: seqüestros, doenças, roubos, humilhações, falsidades, exclusão, negação. Há também diferentes formas de se promover a vida: resistindo, insistindo, persistindo. Mesmo sentindo dor, mesmo trêmula pelo Parkinson, o momento das tentativas de escrita do nome próprio produzia agoras inexplicáveis em minha avó e em mim, produzia sentido, produzia um existir em comunhão. Quem desiste de si e dos outros já não vive mais, o que vive é a antivida, a pseudo-existência. Antivida e vida coexistem, estão presentes nos muitos agoras que não se explicam do existir humano. Insistência e resistência nos faziam olhar para os horizontes, para além do que vivíamos.
            Os pontos zeros produzidos a partir das antividas precisam ser olhados como instantes únicos, como agoras inexplicáveis que recriam as existências.  Lembremos, por exemplo, das populações no Chile, no Haiti, no Brasil, na África, na Índia e em tantos outros lugares do mundo – pessoas que resistem à fome, aos desastres, às catástrofes. Resistem porque acreditam que tudo que persiste e insiste é vital. A vida é insistente e por assim ser, é resistente. Não se entrega sem luta, sem realização de sonhos e desejos.  A vida se refaz, se reinventa em agoras que não se explicam. Os agoras são produzidos em cada instante de vida, em cada novo horizonte que se descortina, em cada raio de Sol que surge tecendo as manhãs de um novo dia, um novo recomeço. 

NOGUEIRA, Valdir. 

2 comentários:

  1. olá

    adorei a história da sua avó. O texto nos leva à reflexão sobre várias coisas, principalmente sobre a vida.
    virei aqui lhe visitar sempre.
    abraços
    maeles

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  2. Oi, Maeles! Que bom receber você aqui! Este espaço também é seu. Vamos partilhando vida. Trarei outros momentos de mim, outras fases que me ajudam a pensar, sentir, experimentar a vida com mais sentido, ainda que em meio a tempestades e fleches de muita alegria. Obrigado, por sua significante presença.
    Valdir

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