quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Existências negadas





Assinatura da Ata de Defesa da Tese de Doutorado - UFPR/2009






Formas e tempos existenciais, quando enclausurados nos autômatos, se negam. Existências negadas. [...] A existência embrutecida renasce na estética antinegação.   


            Muitas pessoas vivem enclausuradas nos moldes que foram forjados para suas vidas. Não podem ser, não podem estar, não podem viver o que escolheram viver. Outras são negadas pelo que são e pelo que desejam e aspiram vir a ser; algumas são negadas porque vivem o que outros determinam ser a sua vida. Esses determinismos, clausuras e modelos mecanicistas que impõem uma dada forma de viver, impedem homens e mulheres de ser mais; amputa-lhes a descoberta dos seus potenciais.
            Culturalmente, dadas as condições de vida de muitas pessoas, a negação apresenta-se como dominação e poder de uns sobre os outros. Isso não é e não pode ser a regra. A vida sempre encontra um meio, uma saída. Ninguém é o que não quer ser porque tem que ser. Cada um é o que deseja ser se quiser ser. Podemos e devemos ser autores de nossa própria história. A ideia colocada no ditado popular de que “pau que nasce torto, morre torto” não serve e não pode ser levado ao “pé da letra” para o ser humano. Há sempre uma escolha, há sempre outra direção, há sempre outro caminho. Não podemos aceitar as condições nas quais, muitas vezes, nos colocam. Não podemos viver automatizados. Não seria vida, seria prisão, seria negação do existir.
            Quando estava no ensino médio, sempre que ia para o colégio, no início da noite, via passar por mim o ônibus que levava os estudantes para a universidade. Em pensamento eu dizia: “Um dia estarei lá”. Sabia que isso parecia impossível, sabia que minha família não tinha condições financeiras de bancar uma vaga na universidade. Mas eu queria, eu desejava fazer o vestibular. Queria ir para a universidade, porém, sem ter naquele momento, como me manter. Meu pai, funcionário público – motorista na prefeitura; minha mãe, cozinheira em um restaurante no centro da cidade. Passei no vestibular. Chegou o dia da matricula e eu não tinha dinheiro para fazê-la. Custava caro. Minha mãe, ao ver minha aflição foi até o restaurante onde trabalhava e pediu um adiantamento para me ajudar. Após fazer o pedido ao seu patrão ouviu o mesmo dizer: “Filho de pobre entra na universidade, mas não termina”. Isso foi muito forte. Ela me contou o que havia ouvido. Eu disse a ela: “Vamos ver do que o filho de pobre é capaz”. Produziu-se um ponto zero.  
            A pobreza é uma condição, não uma determinação. Ela marca a negação dos outros em muitos países no mundo todo. Pior que a pobreza material é a pobreza de espírito, a pobreza de caráter. Naquele momento, minha mãe e eu enfrentávamos o ponto zero colocado pela nossa condição de vida material. Um ponto que me fez ir além do que estava determinado pelo outro; fez-me enxergar, no impossível, o possível; ajudou-me a acreditar no inacreditável: eu posso.
            Havia uma clausura e um modelo de vida sendo impostos. No entanto, viver a condição de pobreza material não fazia de mim e de minha família pobres espirituais. Minha mãe sempre acreditou no potencial da educação escolar e não seria, naquele momento, dada às condições que vivíamos que desistiria de ajudar o filho a ir além dos determinismos sociais. Fiz minha matricula e potencializei meus sonhos. Arranjei um trabalho, depois outro e logo estava atuando em uma escola. Minha família toda foi envolvida para me ajudar com as despesas do curso – trabalhos de campo, viagens, materiais e tudo o mais que era exigido na graduação em Geografia. Dedicava-me para superar os obstáculos que surgiram ao longo da jornada iniciada. Quando tudo parecia difícil, olhava para o que já havia superado e continuava. Depois da faculdade veio a especialização; após a especialização, o mestrado; terminado o mestrado veio o doutorado e a vida não parou só porque me disseram que filho de pobre não pode concluir uma faculdade seja quando e onde for. Ela continuou mais intensa, mais desafiadora, mais carregada de força.
            Quando me coloquei diante daquele ponto zero – enfrentar a luta ou desistir dela, a decisão não poderia ser outra: fui lutar. O filho de pobre foi além do que lhe estava sendo imposto. Superou um dado modelo colocado socialmente. Como isso foi possível? A possibilidade estava justamente no momento de enfrentamento da negação da própria existência. Eu não poderia aceitar a negação de mim e da minha família; não poderia deixar que a imposição de uma condição social me fizesse menos - um incapaz, a massa de manobra. Havia uma possibilidade, havia um caminho, havia uma direção – enfrentar a batalha, ir para a guerra, combater o determinismo, fazer do meu sonho uma possibilidade. Eu escolhi empoderar o sonho e torná-lo realidade.
            Nesse momento, entre o tempo de escrita e leitura dessas linhas, muitas pessoas estão sendo negadas, muitos jovens estão sendo aniquilidos, muitos homens e mulheres estão sendo encarcerados, enclausurados em modelos sociais que negam e fazem as suas vidas desesperançadas, sem sonhos, sem possibilidades. Outros estão sendo levados a pensar que não podem; que não tem condições; que não dão conta; que não são capazes. Alguns têm suas vidas roubadas por serem obrigados a fazerem o que não querem por não permitirem que vejam outras formas de forjarem suas próprias vidas, seus projetos, seus lugares no mundo.
            Ainda que tudo isso aconteça, ainda que nos digam muitas vezes: “Filho de não pode”, é preciso dizer: eu posso, nós podemos. Esse instante do ponto zero que se apresenta na negação de si, que se mostra na automatização da vida é o tempo que nos é dado para perceber que essa mesma vida negada, usurpada, automatizada é capaz de se reencontrar. É capaz de metamorfosear-se, de viver uma alquimia.
            Não se pode desprezar o potencial criativo e desejoso que existe em cada um de nós. Não se pode negar a si próprio quando se ouve que a única opção é “morrer torto”. Há outras opções, há outras formas, há outras escolhas a serem feitas. Por isso, chegar ao ponto zero não pode ser encarado como a terminalidade, a finitude do viver, do existir. Pode e deve ser enfrentado como o tempo-instante de se permitir acreditar numa nova escolha. As existências negadas e levadas aos pontos zeros do viver são e podem ser existências renascidas quando encontram em si e nas suas lutas, nas suas crenças, nos seus valores o que as faz mais. 
            Quando eu passava por uma grande favela numa cidade do Brasil, por volta das 7h da manhã, via um menino uniformizado e com sua mochila nas costas descer um morro a caminho da escola. O que fez os pais dessa criança acreditar na escola? É a necessidade de ter o filho cuidado e educado por um tempo em uma instituição que tem uma prática social importante na sociedade hodierna ou a crença de que o filho pode mais e, ao poder mais, se faz mais com a escola? É a vontade, o desejo, a necessidade e a escolha em superar a condição de vida na favela ou o sonho de que outro mundo pode ser construído a partir desse ato – ir a escola? A vida na favela pode ter colocado alguns pontos zero para essa família da grande cidade, mas ao zerar eles não paralisaram, não impediram o filho de acreditar nos impossíveis-possíveis, de sonhar além do que já sonharam. No interior da favela eles lutam contra os modelos automatizados que enclausuram a vida. Lutam a partir das escolhas que fazem.
            Ainda que neguem nossa forma de ser e existir, não podemos nos anular. Zerar não é estagnar. É ver mais longe, ver fundo, ver largo, ver grande. O ponto zero deve ampliar nossa visão de mundo e de nós mesmos.

NOGUEIRA, Valdir. 

2 comentários:

  1. Estou sem palavras!
    Muito bom teu texto, como também, inspiradora sua experiência de vida.
    É como Renato Russo diz "Quem acredita sempre alcança"; como Raul Seixas que proclama " queira; bastas ser sincero e desejar profundo".
    Abração!

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  2. Obrigado, Gui! Há sempre uma possibilidade e nossos sonhos são nossos guias ao longo dos caminhos que construímos. Abraços e tudo de bom.

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