segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Matemática do tempo em três cenas


Vida - um tempo carregado de agoras. Instatentes manifestados, mostrados em momentos do existir. Um dia a mais pode ser um dia a menos. Um dia a menos pode ser um dia a mais.


            Primeira cena - Estava trabalhando com um grupo de alunos do ensino fundamental. Um adolescente sempre dava um jeito de me irritar, de provocar a turma, de chamar a atenção para que o tempo de aula fosse outro tempo. Ele queria ser notado, ele precisava que o olhassem. Um se transformava em muitos quando os outros o seguiam. Pensei em desistir, já não queria mais estar naquela escola e com aquele grupo de alunos. Já não estava acreditando mais no meu projeto de vida e de formação. Porém, no instante zero, quando todos saem e fico no silêncio da sala, quando estou diante das paredes e dos trabalhos sobre minha mesa, quando me deparo com o vazio, quando a experiência docente chega ao seu ponto-limite, a vida resolve tomar outra direção.
            No dia seguinte, quando iniciávamos nossos trabalhos, pela manhã, antes de qualquer outra ação, falo ao grupo: “Um dia a mais é um dia a menos que temos para partilhar nossas vidas e esse dia a menos poderá ser um dia a mais se soubermos viver melhor esse tempo que estamos aqui”.  O ponto zero do dia anterior me levou a pensar sobre o sentido da vida de docente com aquele grupo de alunos. Passamos a nos ouvir, a ser mais amigos, a compartilhar a cada inicio de aula, um pouco de nós mesmos. Todos precisávamos de atenção, todos precisávamos ser ouvidos. Essa parada, esse instante no tempo e no espaço me fez pensar sobre o que significa viver um dia a mais quando esse dia se torna um dia a menos.
            Segunda cena – Após trabalhar com os alunos de uma universidade, no período noturno, chegava em casa por volta das 23 horas. Às vezes havia um prato sobre a mesa e algumas panelas no fogão – era a janta que estava preparada me esperando. Outras vezes, por conta dos problemas em casa, isso nem sempre era possível. Algumas vezes eu tinha a companhia de minha mãe e dos sobrinhos – que na época tinham entre 5 e 8 anos; em outras, era eu e o silêncio da noite, pois todos já dormiam após um dia de trabalho, de estudos e brincadeiras. Antes de me organizar para dormir, passava no quarto dos meus sobrinhos para vê-los dormir e pedir aos anjos que os protegessem.
            Certa noite ao visitá-los durante o sono, fiquei observando a respiração de cada um deles. Em um intervalo de tempo muito curto, percebia o movimento do peitoral e da vida pulsando com a entrada e saída de ar. Foi um tempo de contemplação e um tempo que me levou ao ponto zero. Um ponto que me mostrava o valor da vida. Cada noite a mais de trabalho era uma noite a menos com meus sobrinhos, mas também, cada noite a menos se tornava uma noite a mais ao vê-los crescer, ao vê-los respirar, ao vê-los dormir, ao vê-los comigo. Eles estavam ali, estavam vivos, estavam em casa. Aquele instante de observação, aquele tempo de ver e sentir a vida fluindo ajudava a continuar, ajudava a encontrar forças onde pensava não existir; ajudava a entender que todo dia a menos poderia ser um dia a mais se eu soubesse vivê-lo, se eu soubesse aproveitá-lo intensamente, seu eu não paralisasse. Ver e sentir a vida num respirar me colocou no ponto zero. Colocou-me diante da singularidade daquele momento, diante da existência do outro. Esse ponto zero me dava pistas para a vida continuar fluindo como um rio.
            Terceira cena – Uma amiga de juventude estava para receber a visita de uma amiga de Itabuna – Bahia que vinha rever os amigos do Sul. Resolvemos nos reunir para, no último dia de sua estada em nosso Estado e em nossa cidade, celebrar o momento do encontro, o momento da alegria de rever amigos que há tempos não via. A festa foi na casa de minha amiga - onde ela estava hospedada. Preparamos tudo e vivemos aquele momento de encontro como o representante de muitos outros que viria. A presença dos amigos era o presente ofertado a nossa visitante. Terminada a festa, quando todos já haviam saído, ficaram a visitante, minha amiga e eu. Era momento de eu me despedir da visitante que após uma semana, estava retornando para sua cidade-natal. Após um abraço demorado e de sentir as lágrimas banharem nossos olhos, minha amiga olhando para mim, me disse: “Um dia também vou viajar para ver você chorar assim”.
            Um dia foi o tempo que tivemos. Foi o dia de preparo da festa de despedida da amiga que ela recebera. Um dia foi o tempo que tivemos para celebrar a vida com aqueles que amamos. Um dia foi o instante no tempo que nos levou para o ponto zero. A visitante de Itabuna viajou na manhã seguinte e na noite desse mesmo dia minha amiga faleceu num acidente terrível. Como havia me dito, foi viajar para eu chorar. Eu não pude vê-la. Ela ficou deformada. Sei que ela viu minhas lágrimas. Chorei muito! Aquele dia foi um dia a mais, mas também foi um dia a menos. Se soubesse, viveria aquele dia de preparo da festa, de encontro com os amigos, de contemplação de seu sorriso, seu olhar, sua voz de forma mais intensa e com mais sentido. Um dia a mais foi um dia a menos. O a mais do dia seguinte trouxe a sua morte.  Estava eu e tantos outros no ponto zero. A vida parava. Como continuar? A vida zerava com a morte. Era tempo de rever tudo, de reorganizar tudo. Era tempo de recomeçar de outra forma.
            Os pontos zero surgem de forma inesperada, se projetam a nossa frente e em nossa existência de diferentes formas. São oportunidades. Quantas pessoas, em seus dias a mais não conseguem viver o sentido de, ao se tornarem dias a menos, fazê-los ser mais. Vivem sufocados negando-se e negando a existência de si com os outros, com o mundo. Se eu soubesse que minha amiga viajaria para não mais voltar, faria os dias a menos serem dias a mais e quanto mais os dias passassem avançando no tempo, mais tempo de vida teríamos intensificado nos dias a menos.
            Hoje, meus sobrinhos são lindos jovens e, cada dia a mais com eles, mesmo que sejam dias a menos, são sempre mais, são sempre carregados de significados, são sempre dádivas, são intensos. Não desperdiço olhares, sorrisos, abraços, afagos, escutas e silêncios. Não me fecho as brincadeiras, as danças, aos conflitos. Não deixo de fazer pipoca, de ir à praia, de correr de um lado para o outro, de comer o pudim recém tirado do fogão e partilhado em três no mesmo prato. Não os impeço de ser e estar, de viver, de sentir o pulsar da existência. Ao invés de muros, somos pontes uns para os outros.
            Cada dia a mais que vivo com alunos que passam por minha vida, são dias a menos, mas com sentido de mais. Mais oportunidade para conhecer gente diferente de mim; conhecer outras culturas, outros credos, outros lugares e com outros valores. Dias a menos sendo dias a mais para nos ajudarmos, para nos fazermos mais gente, mais humanos, mais sujeitos de nossas histórias. Os dias a mais não podem ser torturantes. Se eu não quiser viver o dia de amanhã como vivi o meu hoje, o que fiz para viver bem o hoje? Que a mais foi acrescentado no meu dia a menos? Qual a intensidade do hoje em minha vida? O hoje é o nosso dia a mais e também o nosso dia a menos. No hoje encontramos o ponto zero. O amanhã depende do que faremos a partir dele. Zerar também é uma possibilidade de mais quando tudo parece menos.

NOGUEIRA, Valdir.

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