quarta-feira, 13 de junho de 2012

O ANDARILHO, A GAIVOTA E A FOLHA SECA


Foto: Cenas Urbanas. 

Com o dedo em riste, o andarilho seguia seu rumo e falava coisas que os de dentro não poderiam ouvir, nem os de fora por que para elas, eram tão-somente coisas de andarilho. Ele gesticulava e apontava muitas vezes para frente e para o alto. Seu dedo indicador era o sinalizador de que fazia referencia a alguma coisa que fervia em sua cabeça e colocava seus pensamentos e cordas vocais em movimento. Mas qual importância? Qual valor? Para os de dentro e os de fora, um mendigo é só um mendigo. Alguém que, por desilusão ou algum acaso da vida, vive a mendicância e vaga pelas ruas da cidade como alguém fora dos padrões e da normalidade dos de dentro e dos de fora na sociedade. Mas o mendigo, de dentro ou de fora? Qual seu lugar social? Sobra humana? Indigência? Parasita social? Ou humano descaracterizado de sua humanidade? Não importa não é? Mendigos sempre caminharam por muitas ruas ao longo da história em todo o mundo; mendigos continuam a caminhar pelas ruas todos os dias e cruzam nas esquinas e nas longas avenidas com as gentes de dentro e de fora. E ele, a qual genteidade pertence? Qual das gentes faz parte da sua gente? Não importa não é? Importa sim. Seu dedo em riste e sua fala incessante tratavam de algo ou alguma coisa que lhe fazia refletir, fazia pensar, produzia um discurso que circulava sem eco, mas circulava. Uma critica social? Uma denúncia? Um anúncio? Uma reflexão filosófica sobre o ato de seguir como caminhante? Não se sabe. Quem estava dentro, não podia ouvir; quem estava fora, ouvia sem entender quando o passante, simplesmente passava. Passava e falava. Ele provocava e desinstalava quem, de dentro, profundo mergulhava e quem, de fora, distante apenas olhava. O andarilho levava consigo uma mensagem e por isso a comunicava com seu corpo, seu estado, sua voz, seu som inaudível, sua condição escolhida ou produzida. O andarilho foi um dos personagens reais desse cotidiano que nos provoca pelo o que ele é enquanto está sendo, não pelo o que ele foi depois de ter sido. O andarilho não ficou de fora, nem se colocou por dentro. Ele estava lá, andando e sendo o que precisava ser para quem, naquele instante de passar por ele, precisasse também, ser e ouvir o próprio ser.


Num outro ponto, outro acontecimento. Outro pensar repentino sobre a gaivota. La estava ela silenciosa e imóvel olhando para o mar. Quem de dentro olhava, via apenas um corpo leve de penas escuras e outras brancas que não saia do lugar. Olhava para as ondas? Tinha medo do mar revolto? O vento a impedia de voar? Estava fraca, desnutrida? Não tinha condições de alçar voo? O que lhe acontecia? Sem bando e sozinha, via outros pássaros que passavam e alguns andantes humanos que circulavam distantes de onde ela se encontrava. O que acontecia com aquele pássaro? Por que não estava nas alturas? Por que não procurava por peixes nas marolas? A praia extensa a fazia menor do que parecia ser. Não vivia um conflito, nem um problema social urbano, vivia o que seu estado de pássaro e de gaivota a permitia viver, naquele momento. Talvez uma parada necessária. Talvez um descanso para as asas. Talvez e talvez... A gaivota estava do lado de fora de quem estava do lado de dentro. E de fora ela se colocava por dentro de quem de dentro olhara lá fora. Ela não falava, nem fazia gestos, nem sequer se movia. Mas não precisava falar. Aquela gaivota falava de algum modo. Quem precisasse e quem quisesse a ouviria. O ato – ficar inerte, parado, sem movimento falava para quem de dentro ou de fora também, por alguma situação estivesse inerte no tempo e no espaço. Vida paralisada. Ganhar as alturas ou ficar no chão? Ela, sendo gaivota poderia ganhar as alturas e, na necessidade de seu estado instintivo, ficar no chão. E os de dentro? Os de fora? Onde estavam e onde ficavam?

Foto: Edson dos Santos.

Pequenos e simples acontecimentos do cotidiano que nem sempre são notados. Às vezes percebidos por gentes de dentro que de fora se colocam para, novamente, dentro estar. Exercício difícil de fazer. Movimento difícil de viver. Necessidade de afastar-se para fora quando se insiste em ficar dentro. E,em se colocando por fora, numa repentina saída de dentro,às vezes se pode até olhar de forma diferente para uma folha seca -o terceiro personagem desse triângulo fenomênico apresentado pelo cotidiano para quem, de dentro e de fora, olha para dentro e para fora. Ela caiu sem esperar e ficou num lugar que a permitiu ser levada para outro lugar, outro espaço, outra atmosfera. Distanciou-se de sua origem para cumprir alguma meta dada por alguém de dentro ou de fora, pois folhas não têm metas pessoais. Tao seca que parecia sem vida, mas sem vida não estava. Ainda havia em si um pouco de clorofila e, em suas ramagens, no tecido ressequido, um pouco de musgo. A folha findou sua vida? Deixou de ser folha? Passou a ser outra coisa? Não. Continuou folha sob o ponto de vista de quem já de fora a observava. Voou folha até chegar aonde chegou. Só deixará de ser folha depois que toda a sequidão e os agentes físicos a transformarem em outra coisa que não seja a folha. Energia. O andarilho, a gaivota e a folha – energias em estados diferenciados do viver. Processos de vida em estados diferenciados no acontecer cotidiano. Forças em movimento. Um pouco da folha, do andarilho e da gaivota sempre estão em quem, de fora ou de dentro olham para um andarilho, uma gaivota e uma folha. Quem de dentro se coloca de fora vive um pouco do andarilho, da gaivota e da folha; quem de fora se volta para dentro, se refaz com o andarilho, a gaivota e a folha. Não é nem uma coisa, nem outra. É o que esses acontecimentos fenomênicos permitiram, naquele momento perceptivo, de dentro e de fora, ser.

DbNog. 

2 comentários:

  1. Maravilhoso valdir... simplesmente assim...!!! Abraços de seu aluno e amigo Guilherme.

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  2. Importante viver as duas situações: de dentro e de fora...pois, nessa dinâmica acontece a dialética do interpretar a Vida em suas várias dimensões, na construção do equilíbrio sócio-individual mediante a interpenetração do Eu no mundo dos objetos e dos atores de nossos ambientes.

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